Artigo: Lucas Tonaco*
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Existem cerca de 1011 estrelas na galáxia. Esse já foi considerado um número grande. Mas são apenas cem bilhões. É menos que a dívida interna! Antigamente, estes números eram chamados de números astronômicos. Agora, deveríamos chamá-los de números econômicos.
FEYNMAN, Richard, 1987, Astronomically inadequate, The Economist.

O agressivo lobby dos defensores das teses da privatização do saneamento, em especial aqueles think tanks que por vezes são porta-vozes vorazes dos mais diletantes em desenvolvimento de políticas públicas localizadas na redução da desigualdade do saneamento, mas especialistas demais em promoção dos conceitos de privatização, logram, invariavelmente de números, que por vezes são nada menos e nada mais do que a superlativização do que já é exagerado, e tudo, com a finalidade última na conclusão inadequada com premissas tortas, de que, não há investimento público em saneamento, ou quiçá, quando há é pouco ou insuficiente – ignorando o BNDES (polêmicas de diretrizes ou financiamento de privatizações a parte) ou qualquer tipo de política desenvolvimentista em termos de saneamento, indústria ou sustentabilidade e os exemplos ao redor do mundo no setor – nesse storyboard, tais números são essenciais, advindos das mais diversas formas de alegação – tudo para caber em um título de jornal ou nas proposições descaradas.

Desde de a Abcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto) alegar que o Brasil precisa investir R$ 893,3 bilhões até um outro estudo da FDC (Fundação Dom Cabral) que conclui que são necessários R$ 500 bilhões em 10 anos para atingir metas de universalização do saneamento, há de tudo, de tudo para alegar que não é possível o investimento público (com isso as companhias públicas ou mistas de saneamento) investir em saneamento, sendo portanto, necessário, a todo custo (nem que esse custo seja regulatório) fazer investimentos privados.

O cerne da discussão da NR 3 da ANA se relaciona exatamente aí: com o custo privado e com alterações na metodologia para torná-la mais “eficiente”, afinal, no processos de encampação, privatizações veladas, como é no caso de Patos de Minas (MG) – que inclusive, o 161 da ANA foi inserido como base normativa e de “inovação” para o projeto de encampação ou contratos vencidos – a relação entre municipalidade, saneamento e divida sempre foi um dos entraves no avanço da entradas de empresas privadas no setor, que parece aos poucos estar, step by step, alterando elementos essenciais dessa dinâmica, que a curto, médio e longo prazo, e por trás desse processo? O que nos interessa portanto saber? Por agora, a mais essencial das perguntas: a filosofia por trás deste processo: assim como Chesterton escreve em Os Hereges: “Mas há algumas pessoas, no entanto – e eu sou uma delas, que pensam que a coisa mais prática e importante sobre um homem ainda é a sua visão do universo. Nós achamos que para uma senhoria considerando um inquilino, é importante saber o seu rendimento, mas ainda mais importante saber a sua filosofia. Nós achamos que para um general prestes a combater um inimigo, é importante saber os números do inimigo, mas ainda mais importante saber a filosofia do inimigo. Nós pensamos que a questão não é se a teoria do cosmos afeta assuntos, mas se, a longo prazo, qualquer outra coisa afeta”, portanto, de filosofia bem pragmática e utilitarista, nos interessa saber se a NR 3 vai afetar, no que vai afetar e como vai afetar.  

Primeiro, o início, é importante que compreendemos, o município como originariamente a derivação histórica e territorial da práxis do poder, assim como José Murilo de Carvalho descreve no prefácio da edição de Coronelismo, enxada e voto de Victor Nunes Leal “o coronelismo, nessa visão, não é simplesmente um fenômeno da política local, não é mandonismo. Tem a ver com a conexão entre município, Estado e União, entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação exercido nacionalmente”, portanto, como na tese de Victor Nunes Leal, O município e o regime representativo no Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo e mesmo após as dissoluções agrárias e o urbano como dilema fundamental na modernidade do Brasil, como supõe as teses de Sérgio Buarque de Hollanda, é necessário, que faça-se, em longue durée compreender que mesmo após a Constituição Federal de 1988, a reserva de poder territorial ainda na municipalidade, fazendo que em termos de concessões públicas, como o supracitado a relação entre municípios, os donos da concessão de saneamento público e a relação e as privatizações: começamos pela premissa da dinâmica complexa que levou a números também astronômicos da crise da municipalidade, que fez inclusive a Confederação Nacional de Municípios (CNM), declarar em 2016, que 98% dos municípios brasileiros estão em crise financeira, ou seja, por complexas questões tributárias, de repasses diretos, judicializações exacerbadas, Lei de Responsabilidade Fiscal  (LRF), dentre diversos outros fatores, com que fosse asfixiado financeiramente os municípios, criando por tanto um paradoxo para as teses de capital de Bourdieu, onde, o município não têm portanto capital econômico mas têm capital político, sendo assim, historicamente, o que, substancialmente impediu com que promoções nas privatizações do saneamento no Brasil foi também a capacidade, no período do êxodo rural, dos municípios investirem em saneamento, seja como DMAE’s, SAAE’s, ou outras alternativas, como o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) de 1968, que foi iniciado em 1971, fizesse derivações que dentre as circunstâncias de instiuição desenvolvimentista nacionalista da política da ditadura militar, como a Lei das S.A (Lei 6.404 de 1976), financeirização do setor de utities no Brasil, por aspectos transnacionais tais como poupança da classe média estadunidense, canadense ou europeia, ou como a posteriori do uso de recursos do FGTS em saneamento, foi fazendo com que DMAE’s, SAAE’s tivessem sua substituição por empresas estaduais de saneamento, onde mesmo após o zeitgeist das privatizações da década de 90, resistiram nos municípios, um tanto porquê eram soluções geopolíticas para o estados fizeram políticas públicas como subsídio cruzado, tomada de investimentos no varejo de bancos ou estatal de longo prazo tornando juros e o próprio capital com menor valor na precificação e um tanto porquê também parecia uma solução política adequada aos moldes de inserção de cargos nas direções, superintendências e governança dessas empresas e também para adequação da relação entre legislativos municipais e prefeitos com demandas regionais específicas sendo mais objetivamente direcionadas e barganhadas com governadores – há outros motivos da resistência do saneamento público estadual, por óbvio, mas o fato é que a relação entre municipalidade, saneamento e privatização começa a ser abalada após o Novo Marco do Saneamento (14.026/20) e seus reflexos, em especial na cadeia normativa da regulação.

Machado de Assis, em Primas de Sapucaia, escreveu que “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies” – aqui não é diferente: a Lei 14.026/20 após seu lobby muito bem executado trouxe consigo uma série de artifícios na busca de fortalecer as empresas privadas de saneamento e enfraquecer – até em termos de segurança jurídica – as empresas estaduais, puxando a ideia de que após a normatização houvesse também o lobby pela regulação, onde na pirâmide normativa seria a última etapa para efetividade dos problemas do dono da concessão, o município.

Se antes o problema era a insegurança jurídica após os processos de encampação, licitações e vencido os editais a municipalidade não tivesse dinheiro para arcar com o processo (e aí vem a problemática dos precatórios, também), agora, com metodologia de indenização e (não) amortizações melhor regulada, remanescentes das empresas estaduais ou municipais de saneamento, está colocada a prova como mais um passo rumo ao que se pode esperar: melhor, mais efetiva e mais robusta metodologia buscando não apenas “facilitar” a vida desses processos complexos que muitas vezes geravam insegurança jurídica, normativa, longos processos e incertezas quanto às licitações  nos tribunais de justiça e de contas, agora, tudo está rumo a uma regulamentação efetiva, com inclusive a hipótese, tal qual no edital de Patos de Minas (MG) a tese do encontro entre contas a serem indenizadas pelas empresas privadas, estas, que como na primeira parte do artigo expôs se dispõe de possibilidade de capitalização para os negócios de longo prazo também astronômica, seja com BTG, BNDES, captação em bolsa ou em abertura de capital como é o que parece que acontecerá com a AEGEA em 2024, esse endividamento para as empresa privadas passa a ser interessante sendo as que as concessões são entre 25, 30 e 35 anos – seja essa capitalização para pagar indenizações e posteriormente redução no valor da outorga no município, seja no aumento das tarifas ou seja na redução do valor investido, há muitas possibilidades de payback  atrativo para as empresas privadas de saneamento também arcarem com tais indenizações, mesmo nos contratos não vencidos onde há inclusive incidência de lucros cessantes no contrato concessionário, o que em teses “agradaria” os investidores minoritários e acionistas das empresas mistas de saneamento público, que mais preocupados com a financeirização e lucratividade, por óbvio, criaria uma espécie de acordo indenizatório e de remuneração do capital envolvido de modo com que inclusive fosse desequilibrado o interesse a longo prazo das concessões estaduais por empresas mistas.

Regulação puxando normatividade e formando reiteração de casos: a NR 3 e 161 da ANA, teve como diretivas do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento e orientações do Tribunal de Contas da União e da Secretaria do Tesouro Nacional e também como principais participantes no processo de consulta pública o lobby privado, seja pela AEGEA, seja pela ABCON-SINDCON,  as alterações foram no sentido da “eficiência e celeridade”, começando pelo  determinado valor justo (VJ), com definição e considerações seguintes, o VJ busca determinar o valor de mercado do bem no momento da indenização, levando em conta diversos fatores, como depreciação, obsolescência, condições de mercado e demanda por bens similares. Essa metodologia oferece a estimativa mais precisa do valor real do bem, mas também é a mais complexa e subjetiva, exigindo expertise em avaliação de bens e análise de mercado. Na metodologia de cálculo: O VJ pode ser calculado por meio de diferentes métodos, como, a avaliação por empresa especializada, nessa abordagem envolve a contratação de uma empresa especializada em avaliação de bens para determinar o VJ do bem em questão.Outro fator de análise, é análise de mercado, nessa metodologia a perspectiva consiste na pesquisa e análise de preços de bens similares no mercado, considerando fatores como localização, estado de conservação, características técnicas e demanda por bens similares.Os demais métodos de avaliação de ativos são diversos métodos de avaliação de ativos podem ser utilizados para determinar o VJ, como o método do Fluxo de Caixa Descontado (DCF), o método do Valor Presente Líquido (VPL) e o método do Valor Residual. Em uma determinada perspectiva sobre o processo utilitarista o VJ oferece a estimativa mais precisa do valor real do bem, mas pode ser mais complexo e oneroso de calcular, exigindo expertise específica e análise de mercado detalhada.

E em um determinado cenário hipotéticos e determinado impacto sobre depreciação e obsolescência, considerando a estação de tratamento de água dos exemplos anteriores, o VJ em 2024 poderia ser de R$ 25 milhões, caso o valor de mercado de uma estação similar estivesse entre o CHC (R$ 13,26 milhões) e o VR (R$ 30 milhões), considerando fatores como depreciação e obsolescência.Em outro cenário hipotético sobre fatores remanescentes, para um sistema de tratamento de esgoto com alto grau de obsolescência tecnológica e baixa demanda no mercado, o VJ pode ser significativamente inferior ao VR, reconhecendo a desvalorização do bem devido à obsolescência e à falta de compradores.

Os dispositivos alterados pela NR 3 – a NR 3 alterou diversos artigos do Novo Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020) e da Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública (Lei 11.445/2007), impactando significativamente os contratos de saneamento em vigor no Brasil. No dito “Novo Marco do Saneamento” (Lei 14.026/2020), o artigo 22, que inclui a necessidade de observância das normas de referência editadas pela ANA na regulação dos serviços de saneamento básico. Essa alteração garante que a NR 3 seja aplicada em todos os contratos de saneamento no Brasil, independentemente do regime de contratação, no artigo 37, que estabelece que a indenização de investimentos não amortizados ou depreciados será calculada de acordo com a norma de referência 3 da ANA. Essa alteração define a NR 3 como o método oficial para calcular a indenização de investimentos em contratos de saneamento.No artigo 40, que define os critérios para a indenização de bens reversíveis, como redes de água e esgoto, estações de tratamento, etc. Essa alteração estabelece regras claras para a indenização de bens reversíveis, garantindo maior segurança jurídica para os investidores e operadores. No artigo 43, estabelece que as doações e subvenções não serão consideradas para fins de indenização. Essa alteração evita que recursos públicos sejam utilizados para indenizar investimentos que já foram subsidiados pelo Estado. Na Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública (Lei 11.445/2007) no artigo 58, inciso IV: Estabelece que os contratos de saneamento devem conter cláusula que defina o método de cálculo da indenização de investimentos não amortizados ou depreciados. Essa alteração garante que os contratos de saneamento estejam em conformidade com a NR 3.

Por óbvio, a NR 3 exige adaptações nos contratos de saneamento em vigor para se adequarem às novas regras de cálculo da indenização. A implementação da NR 3 será gradual, permitindo que os envolvidos se adaptem às novas metodologias de cálculo. O debate sobre a regulação do saneamento básico no Brasil deve considerar as diferentes perspectivas e buscar soluções que atendam ao interesse público e analisar, sempre os processos e relatórios de consultoria pública com a finalidade de o interesse por trás de cada uma das proposições dos lobbys, e é evidente NR 3 estabelece um marco para esse debate, mas questões como metas de universalização, índices de qualidade da operação e o papel do Estado e do capital privado no setor ainda necessitam de discussões aprofundadas, principalmente envolvendo sociedade civil organizada e participação crítica com a finalidade de promoção de direitos sociais mais alargados para além da financeirização do setor promovido pelas privatizações e suas metodologias de eficiência.

Apesar da norma estabelecer diretrizes claras para o cálculo da indenização de investimentos, contribuindo para a segurança jurídica e a atratividade do setor para investimentos privados, a implementação da NR 3 exige adaptações nos contratos existentes e um debate contínuo sobre os desafios e as perspectivas do setor, que inclusive provavelmente terá encontro marcado com tribunais de justiça e de contas, pois assim como os números do setor, o debate entre saneamento público e privado, também deve ser astronômico, afinal, temos demasiadas evidências de que lucros estratosféricos podem atrair empresas privadas ao saneamento, mas em uma metáfora com o cosmos, tal lucro poderá ser conseguido através de estratégias espaciais que vão custar a universalização, deixando uma população em um buraco negro da má prestação na qualidade dos serviços, de tarifas cada vez mais altas e das políticas públicas de saneamento serem atraídas pela gravidade do tamanho dos discursos políticos oportunistas e eleitoreiros nos municípios, especialmente contra as empresas públicas e contra um projeto de saneamento para além do lucro.

Referências Bibliográficas

Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU e dirigente do Sindágua-MG