artigo: Flávio José Rocha da Silva*

O Neoliberalismo é um pensamento econômico também chamado por alguns teóricos de globalização ou mundialização da economia. Elaborado na cidade de Chicago pelo austríaco Friedrich Hayek e pelo estadunidense Milton Friedman, se espalhou para várias partes do mundo. Sua ideia principal é que tudo pode ser resolvido pelo mercado que, acreditam os seus formuladores, pode se autoregular. Teve como seus principais propagadores a Primeira Ministra da Inglaterra Margareth Thatcher e o presidente estadunidense Ronald Regan. Não por acaso a Inglaterra foi o primeiro país a privatizar o seu sistema de distribuição de água no governo de Thatcher. Claro que a água foi privatizada em várias partes do planeta antes, a diferença é que com o Neoliberalismo este fato passou a ser uma política governamental fomentada com a justificativa de que o Estado é incompetente para gerir suas riquezas naturais através das empresas estatais e o mercado pode administrá-la de uma maneira bem mais eficiente. Aliás, um dos motes neoliberais é a eficiência das empresas privadas. Claro que a crise financeira causada pelos bancos privados e os escândalos da Lava Jato no Brasil que tiveram as empreiteiras como protagonista desmentem este fato. No entanto, ele continua sendo repetido. Uma empresa pública pode ser bem administrada e uma empresa privada pode ser um fracasso em termos de gestão e vice-versa. Exemplos abundam em muitos países.

Com o advento do Neoliberalismo no Brasil, grupos econômicos nacionais e internacionais têm se mobilizado para que possam ser alçados a protagonistas da distribuição da água com a privatização das empresas públicas estaduais e municipais de distribuição de água como acionistas ou através das Parcerias Público-Privadas – PPPs – desde os anos noventa. Embora o lobby venha intensificando-se nos últimos anos, é fato que desde o governo do presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) o discurso da necessidade de privatizar este setor público vem sendo alicerçado com leis elaboradas e promulgadas para facilitar o processo. Este caminho foi trilhado com mais afinco no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e com menos intensidade nos mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), mas não ausentes de todo nestes governos. Seu auge acontece atualmente com o atual presidente Michel Temer (2016-) como detalharemos mais adiante.

Durante as últimas décadas, o monopólio2 da distribuição da água pelos Estados e municípios brasileiros vem sendo lentamente repassado para empresas privadas. Atualmente já são 31 milhões de brasileiros atendidos em mais de 322 municípios por empresas privadas de saneamento.3 É como se quase toda a população do Canadá recebesse água em suas torneiras por empresas privadas. A justificativa é que o problema da falta de saneamento para grande parte da população brasileira somente será resolvido com a entrada do capital privado, pois o Estado foi e é ineficiente para expandi-lo para um maior número de residências, segundo os defensores da privatização. A incompetência e a incapacidade do Estado são repetidas à exaustão praticamente como um mantra pelos neoliberais que apregoam haverá a universalização do sistema com o repasse das empresas públicas para os grupos econômicos privados.

Um dos possíveis resultados desta transferência de poder sobre a distribuição da água é que o monopólio privado poderá fixar, junto aos usuários, uma tarifa alta, fato este já ocorrido em países como a Inglaterra e a Bolívia no passado. Como alerta Peixoto (2013, p. 504), “Ressalve-se, porém, que nos casos de monopólio e oligopólio, não havendo instrumento de defesa da concorrência ou de regulação econômica, os preços naturais (custos econômicos) podem ser distorcidos por lucros exorbitantes que os produtores se atribuem.” Não há que se condenar o mundo dos negócios privados, posto que para se manter e se expandir no mercado as empresas necessitam aumentar os seus lucros em escala crescente. O aumento dos preços dos produtos vendidos e a diminuição dos custos é uma regra que se segue há séculos para tal intento. Se o aumento de tarifas já acontece algumas vezes de forma desmedida com o serviço prestado por empresas públicas, imagine-se com a visão mercadológica que imperará com a privatização. Há que se ter em conta que uma empresa privada de saneamento não terá um olhar para o interesse coletivo por ter outra relação com a água comercializada.

Foi no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso que a água começou a ser vista como mercadoria de fato. Aquele presidente pregava que as privatizações guiariam o país para a globalização. Um dos seus primeiros atos a frente da presidência foi vetar o Projeto de Lei 199/1991 que previa um fundo para custear os investimentos em saneamento básico no Brasil (COSTA; RIBEIRO, 2013). O corte de gastos com a melhoria de qualidade de vida da população passou a ser uma regra nos seus dois mandatos. Além disso, com as pressões do Banco Mundial submetendo os seus empréstimos para infraestrutura a uma política de privatizações das empresas públicas, aquele governo passou a promover a concessão dos serviços de distribuição da água no Brasil.

A criação da Agência Nacional de Águas – ANA – através do Decreto 9.984, no ano 2000, estabeleceu a cobrança da água sob a responsabilidade dos comitês de bacias hidrográficas. Esta lei citou as palavras cobrança, ou termos a ela relacionados tais como compensação financeira, arrecadação, receitas provenientes e pagamento por treze vezes em seus artigos. Todos estes termos estão relacionados com a valoração econômica da água. Por outro lado, apenas uma vez a lei citou o termo conservação qualitativa dos recursos hídricos nestes mesmos artigos. Tal constatação demonstra qual era o real interesse na criação da ANA por aquele governo.

Ainda é importante ressaltar o grande avanço na privatização do setor hidroelétrico no governo de Fernando Henrique e o fato de que uma empresa privada ou um conjunto destas ter o poder sobre a vazão dos rios não deixa de ser uma privatização das águas brasileiras. O bem coletivo representado pela água não pode estar atrelado a poucos interesses privados. Não há dúvida de que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso foi o mais privatizante dos governos brasileiros e tentou inserir o país no Mercado da Água.

Embora o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha diminuído as privatizações, foi naquele governo que as normas para a Lei 8.987/1995 (Lei de Concessões dos Serviços Públicos) foram disciplinadas pela Lei Nº 11.079/2004,4 a chamada Lei de Parceiras Público-Privadas – PPPs – que segundo Costa e Ribeiro (2013, p. 481), “(…) permitem conciliar a participação privada com o controle público dos serviços, mas que, a depender da forma que venham a ser modeladas, podem transferir esse controle ao setor privado, como ocorre com as concessões plenas.” Mesmo tendo freado a política privatizante do presidente Fernando Henrique Cardoso, este fato não se traduz em favorecimento das empresas públicas de saneamento ou investimento na área como se fazia necessário, o que acabou favorecendo o setor privado da água, de certa forma.

O advento das PPPs é na verdade uma vantagem para as empresas privadas, pois as garantias jurídicas asseguram o lucro desejado em uma espécie de “seguro investimento” dado nestas parcerias. A maior parte dos riscos serão assumidos pela parte pública da parceria. Esta parece ser a tônica das PPPs. Não esqueçamos que concessão é con-ceder o que se tem para um outro. Na verdade, as PPPs são uma espécie de Cavalo de Tróia do Neoliberalismo.

Nos últimos dois anos, o Neoliberalismo voltou a ser hegemônico com o governo Temer, embora nunca tenha desaparecido nos governos anteriores. Uma primeira tentativa de privatização da água aconteceu com a utilização do Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES- acionado para financiar grupos econômicos que queiram investir na privatização de empresas públicas de saneamento estaduais.5 É o dinheiro público financiando a compra de empresas públicas por empresas privadas. Para quem prega que o Estado é incompetente, não deveria fazer sentido para os neoliberais tirar proveito do dinheiro público. Isso só prova que os neoliberais sabem a força do Estado e por isso o querem ao seu lado.

Em julho o presidente Michel Temer editou a Medida Provisória 844/2018 que abrirá ainda mais espaço para a privatização da água no Brasil. Em nota6 a ASSEMAE afirma que, “Além disso, a proposta afeta o subsídio cruzado, gera o aumento das tarifas de saneamento e interfere no poder de decisão do município sobre a regulação dos serviços.” Sem o subsídio cruzado, muitos municípios pequenos poderão ter aumento das tarifas pelos serviços de saneamento. Ademais, os pequenos municípios brasileiros “não lucrativos” podem ser preteridos no processo de licitação para os serviços de saneamento. Não há dúvida de que a MP 844/2018 intensificará o avanço do Mercado da Água no Brasil.

Os últimos governos brasileiros vêm sendo algumas vezes mais, outras vezes menos alinhados com o Neoliberalismo e vêm pavimentando um alicerce jurídico que facilita a solidificação do Mercado da Água em nosso país. Enquanto o governo brasileiro quer privatizar a nossa água, mais de duzentas cidades em diferentes partes do planeta retomaram o poder sobre as empresas de distribuição de água por perceberem que ela é um elemento essencial e não pode ser administrada como uma mercadoria. Para os neoliberais, todo pode ser vendido e comprado e todos somos apenas meros consumidores.

Referências Bibliográficas

COMBLIN, José. O Neoliberalismo: ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes. 2000.

COSTA, Silvano Silvério da; RIBEIRO, Wladimir Antônio. Um itinerário dos aspectos jurídicos-institucionais do saneamento básico no Brasil. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 179-195.

PEIXOTOI, João Batista. Aspectos da gestão econômico-financeira dos serviços de saneamento básico. In HELLER, Leo; CASTRO, José Esteban (Orgs.) Política pública e gestão de saneamento. Belo Horizonte: Editora UFMG; editora Fiocruz. 2013. pp. 502-524.

1 *Flávio José Rocha da Silva é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e Pós-doutorando no PROCAM/IEE-USP.

2 O monopólio da distribuição da água pelas empresas de saneamento é inevitável por causa do custo das redes.

3 Os dados fazem parte do Panorama 2018 of the private sector´s sanitation in Brazil . Cf. em http://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2018/05/ABCON_PAN18_AF_pack_ingles_web_.pdf

5Segundo o sítio eletrônico do BNDES , “Três projetos de concessão dos serviços de distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, indicados pelo BNDES, foram aprovados pelo PPI para qualificação. Atualmente, os serviços estão sob a responsabilidade das seguintes empresas: Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE); Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia (CAERD); Companhia de Saneamento do Pará (COSANPA). A partir da qualificação das três empresas, o BNDES iniciará o detalhamento dos estudos que levarão à modelagem das futuras concessões, em parceria com as equipes dos Estados. Acessível em https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/onde-atuamos/infraestrutura/infraestrutura/!ut/p/z1/rZLNboMwEISfJkdrLTAuHAltEzXQSv0DfIkMmOCq2ARM0vbp6-QYKUFV6ttq19_YOwMMMmCK7-SGG6kV_7R1zug6DlZ3S_KE48X9s4tDL05u54S6EXHgHRiwUpnONJAXqhLDWqrBSDOWR8IMN7oVM6xtC3Ez8lYPMyxV3XMxmH40Y89P6wOyK2UFeS2wU_rCR0XgcUQKQpFPSYBqjqsioNTzXA7p1BuZbeMzJ8T2Ppsaya3EzXkJF9KdFHt4U7pv7dZe_viD5ZTCyrlS4TI-IlfiH44LvGCBzZHTJ1GysVhuGmQN15Cd2G6H5Md2y0KbKK2M-DKQ_Vekurb13W-kfuaPaBEV_v61blN_CH8BICMg9Q!!/dz/d5/L2dBISEvZ0FBIS9nQSEh/

Artigo publicado originalmente em EcoDebate

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