Em 15 de julho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o novo Marco Legal do Saneamento, que visa a abertura do setor para privatizações sob contrapartidas de gradualmente avançar rumo à universalização do serviço. No entanto, nenhum investimento privado no setor aconteceu, num contexto onde o país enfrenta a maior crise sanitária de sua história e parece às portas de um colapso hídrico-energético. Mesmo assim, o governo insiste em boicotar qualquer forma de financiamento público neste serviço essencial. É sobre isso que conversamos com o tecnólogo pós-graduado em engenharia de saneamento.

“O sentimento é de indignação e preocupação. Contudo, as mudanças efetuadas na Política Nacional de Saneamento vêm na mesma lógica das ocorridas na Previdência Social, na legislação trabalhista, tentativa de imposição do Marco Temporal aos indígenas, ou seja, saquear direitos sociais dos que vivem do seu próprio trabalho para transferir para a classe dominante. É uma continuidade da apropriação dos recursos naturais por grupos econômicos. Pois há um processo gradual de privatização da água”, criticou.

Profundo conhecedor do assunto, Marzeni faz uma retrospectiva histórica dos projetos de privatização do saneamento no Brasil, que, de acordo com sua análise, só deram certo onde já havia todas as condições favoráveis ou foram um fracasso. Além do mais, traz o exemplo de grandes capitais do mundo que chegaram a privatizar o serviço, mas retomaram o caráter público e estatal de sua gestão.

Como se as alegações de abrangência mais histórica não fossem suficientes, o quadro brasileiro de crises hídrica e energética torna o cenário ainda mais impróprio. “Nenhuma empresa privada faz campanha para reduzir o consumo de seu produto. Muito pelo contrário, são gastos montanhas de dinheiro em propaganda para induzir as pessoas comprarem até o que elas não precisam. Isso pode aumentar, ainda mais, o consumo e acelerar a redução dos estoques de água, degradação dos mananciais e comprometimento da segurança hídrica”.

A entrevista completa com Marzeni Pereira pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: O que é Saneamento Básico e em que a Lei 14.026/2020 modifica?

Marzeni Pereira: Resumidamente, o Saneamento Básico compreende quatro serviços: a) o fornecimento de água potável; b) coleta e tratamento de esgoto; c) drenagem de águas pluviais; d) coleta e disposição de lixo (resíduos sólidos).

A nova lei de saneamento abre para privatização, essencialmente, as concessões dos serviços de fornecimento de água potável e coleta e tratamento de esgoto, que são os mais rentáveis.

Correio da Cidadania: Como recebeu a aprovação da Lei 14.026/2020, que altera Política Nacional de Saneamento? Quais foram as mudanças mais importantes?

Marzeni Pereira: O sentimento é de indignação e preocupação. Contudo, as mudanças efetuadas na Política Nacional de Saneamento vêm na mesma lógica das ocorridas na Previdência Social, na legislação trabalhista, tentativa de imposição do Marco Temporal aos indígenas, ou seja, saquear direitos sociais dos que vivem do seu próprio trabalho para transferir para a classe dominante. É uma continuidade da apropriação dos recursos naturais por grupos econômicos. Pois há um processo gradual de privatização da água.

Aos poucos, a água, que é um bem comum, vai passando a ser uma commodity (uma mercadoria). Assim como ocorreu com o solo, que antigamente era um bem comum, foi aos poucos sendo privatizado e concentrado nas fortunas de poucas pessoas. É isso o que está ocorrendo com a água.

Dessa forma, podemos perguntar: de quem é um rio? Pela legislação é do Estado. Mas sua água é um bem comum. Qualquer pessoa pode encher um balde e levar para casa, sem precisar de licença. Mas a quem pertencem as águas de um rio, após serem aduzidas por bombas e estarem numa tubulação? E a quem pertencem as águas de um rio ou de um aquífero que foram engarrafadas? De quem é a água utilizada como insumo, em larga escala, pelo agronegócio para produzir cereais para alimentar animais do outro lado do Planeta? Quanto essas empresas pagam pelo uso da água, que a princípio é um bem comum? Nada. Nem sequer recolhem impostos quando os produtos são destinados à exportação. Sim, a água que é um bem comum, essencial à vida, está, aos poucos, sendo privatizada.

Portanto, o novo Marco Legal é muito preocupante! Pois sua principal finalidade é privatizar os serviços de água e esgoto, que são os serviços de melhor retorno financeiro e que, por isso, os grupos econômicos têm maior interesse.

Assim, a decisão de quem vive ou morre passará para um grupo econômico, pois as empresas de saneamento têm como mercadoria a água, que é essencial à vida.

Correio da Cidadania: O que pensa das alegações daqueles que afirmam ser um avanço no sentido da universalização dos serviços de água no país?

Marzeni Pereira: Na década de 1990 alguns municípios começaram a privatizar o saneamento. Entretanto, a iniciativa privada não tem, e nunca teve, interesse em pequenos municípios ou onde há pouca infraestrutura de saneamento instalada, com pouco retorno financeiro. Já nas regiões metropolitanas havia a dúvida quanto à titularidade, se do estado ou do município. Por isso, as privatizações pouco avançaram e, hoje, são cerca de 8% dos municípios do país com serviços privados.

Para facilitar a entrada da iniciativa privada nos setores de infraestrutura, em 2004, foi a aprovada a lei das Parcerias Público-Privadas. Mais um passo no sentido da privatização.

Mas, desde 1995, o governo federal vem tentando privatizar o saneamento. Por isso, as empresas públicas e os serviços autônomos de água e esgoto dificilmente conseguiam financiamento para ampliar e melhorar a infraestrutura. Já nos municípios que privatizaram, o governo liberou financiamento sem muita dificuldade.

Contudo, durante os governos Lula, houve o período de mais recursos disponibilizados, com o PAC e Minha Casa Minha Vida. Mas os pequenos municípios tinham dificuldade para obter empréstimos, já que era necessário apresentar projetos e grande parte deles não tinha condições técnicas para a execução ou contratação de profissionais para fazer tais projetos. Neste caso, o correto seria que o próprio governo federal disponibilizasse a solução completa e adequada.

Dessa forma, entendo que foi uma escolha consciente dos governos não sanar a falta de saneamento no país.

Já a lei aprovada recentemente vai forçar mais a privatização. Mas com recursos públicos. O setor privado não quer investir em atividades que o retorno é de longo prazo. Além disso, há desconfiança dos investidores externos com a política do país e, com a crise econômica, uma parte significativa do setor privado nacional é que tem procurado o governo para garantir sua sobrevivência.

Correio da Cidadania: Passado um ano da aprovação do projeto, houve alguma novidade no setor, novos investimentos e avanço no serviço em locais antes desassistidos? Enfim, alguma promessa se cumpre?

Marzeni Pereira: Não houve novos investimentos, os governos insistem em dificultar as verbas para as autarquias e empresas públicas. A ideia é inviabilizá-las.

Assim, tudo indica que, a médio prazo, irá aumentar a disponibilidade dos serviços de saneamento com as concessões privadas. Com recursos públicos, mas com gestão privada e lucro privado.

Correio da Cidadania: Diante da alta dos preços da energia, da enorme crise do setor e também de algumas tendências climáticas que temos visto, existe alguma condição de se viabilizarem projetos privados de saneamento?

Marzeni Pereira: Já estamos vivenciando uma brutal crise hídrica. Com potencial para ser mais dramática que aquela entre 2013 e 2016, envolvendo não somente abastecimento de água, mas também o fornecimento de energia. E, novamente, “São Pedro” entra como a grande solução, pois foram poucas as medidas preventivas. Portanto, a crise hídrica pode ser um fator que pode dificultar a entrada do setor privado, no curto prazo.

Correio da Cidadania: Por que, a exemplo de algumas críticas que aparecem, a privatização deste serviço pode se refletir em aumento da desigualdade socioeconômica?

Marzeni Pereira: Nenhum empresário é ingênuo para investir num negócio para ter retorno em 15 ou 20 anos. Portanto, o setor privado vai se interessar por regiões onde já tenha infraestrutura instalada, adensamento populacional, renda per capita alta, boa qualidade dos mananciais, ou seja, condições favoráveis para alta lucratividade. São justamente essas áreas que, hoje, geram os superávits, lucro, para que o setor público possa investir onde não tem retorno financeiro. É o chamado subsídio cruzado, ou seja, as obras são feitas com o lucro do próprio setor.

Com a privatização das localidades lucrativas, os governos terão que disponibilizar recursos públicos para fazer as obras nas localidades que o setor privado não tem interesse. Assim também ocorre com a tarifa, as áreas lucrativas subsidiam as não lucrativas. Por isso, é possível ter tarifa social para famílias baixa renda.

Contudo, tem outro fator, o saneamento básico é um monopólio natural. Por exemplo, não é possível ter redes de águas de três empresas diferentes na mesma rua para o consumidor escolher a que tem melhor preço ou melhor qualidade. Portanto, independentemente do preço e da qualidade, o consumidor ficará refém de uma única empresa privada, com interesse em aumentar sua lucratividade.

Correio da Cidadania: Existe uma tendência mundial de reestatização do serviço onde ele foi privatizado?

Marzeni Pereira: Hoje, no mundo, cerca de 90% dos serviços de saneamento são estatais. Contudo, diversas cidades fizeram experiências com o setor privado e em centenas delas já ocorreram reestatização. Pelos mais diversos motivos. Cito alguns:

1) aumento das tarifas; 2) redução da qualidade dos serviços; 3) redução da transparência; 4) desrespeito ao meio ambiente; 5) desrespeito aos contratos, entre outros.

E há outros fatores mais comuns do que se imagina, como o sequestro da entidade reguladora, com influência sobre os governos que as empresas ajudam a eleger, e a degradação das condições de trabalho. Muitas pessoas se preocupam se o produto que elas compraram foi ou não produzido com trabalho degradante.

Entre os países que mais reestatizaram os serviços de infraestrutura estão Alemanha, França e EUA. São exemplos de reestatizações pelo mundo:

1) Buenos Aires, onde o serviço foi privatizado em 1993, com a promessa de melhorar a qualidade do atendimento e aumentar a disponibilidade do serviço. Em 2006, foi retomado o saneamento pelo Estado. Porque os índices de coleta de esgotos subiram somente 3% e de tratamento de esgoto 0% em 13 anos;

2) Em Berlim a empresa era estatal e teve 49,9% vendida ao setor privado. Com isso, houve uma queda na transparência das informações (qualidade da água, reajuste de 35% da tarifa, entre outros). Por isso a população ficou descontente e aprovou em referendo a reestatização, que ocorreu em 2013.

3) Em Paris há muito tempo o saneamento era privado. Mas a concessão foi renovada em 1993. Como a prefeitura entendeu que o valor da tarifa estava elevado, em 2006 reestatizado e reduziram-se as tarifas em 8%.

4) Atlanta (EUA) concedeu o saneamento ao setor privado em 1999. Mas a empresa que assumiu com a promessa de melhorar os serviços não cumpriu o acordo e nada melhorou. Por isso os serviços de saneamento foram retomados em 2003.

Correio da Cidadania: Como foram as experiências onde o Saneamento foi privatizado no Brasil?

Marzeni Pereira: Já ocorreram diversas experiências de privatizações do saneamento no Brasil. Em todas elas ou já tinha uma infraestrutura pronta ou o município era rentável ou foi um fracasso. Vamos a alguns exemplos:

1) Em Tocantins, a empresa estadual, Saneatins, foi privatizada em 1998, quando atuava em 119 municípios. Hoje, atua em apenas 47 municípios e somente nas áreas urbanas, onde tem retorno financeiro. O restante, que é deficitário, voltou para o setor público.

2) Manaus privatizou o saneamento há 20 anos. Três empresas já assumiram a concessão desde a privatização. Mas, hoje, 87% dos esgotos são jogados nos rios, sem tratamento algum. Além disso, 27% da população não recebe água tratada. É uma das piores cidades do país em saneamento.

3) Itu, o saneamento foi privatizado em 2007 e remunicipalizado em 2017. Em 2013 a empresa foi multada, por descumprir o contrato. Mas é bom lembrar que o município ficou 10 meses sob forte racionamento de água em 2014, onde milhares de pessoas ficaram até 30 dias sem uma gota d’água e as contas continuavam chegando.

É verdade que teve uma estiagem. Mas o racionamento ocorreu, principalmente, pela falta de investimentos em mananciais (reservação, represamento de rios, perfuração de poços, por exemplo), bem como, na redução das perdas. Tanto é verdade que a população ia buscar água em municípios vizinhos que sofriam com a mesma estiagem.

Correio da Cidadania: Não existem bons resultados nas privatizações?

Marzeni Pereira: Vamos falar das vitrines do setor privado: Limeira e Niterói. Limeira foi privatizado em 1995. Hoje, 25 anos depois, abastece de água potável 97% da população total do município e coleta 97% dos esgotos. Mas na época da privatização já abastecia com água potável 95% da população e coletava e tratava 90% dos esgotos. Portanto, o município já contava com uma boa infraestrutura de saneamento já instalada.

Já Niterói, quero detalhar um pouco mais, pois é sempre citado nas defesas das privatizações. É o município com a maior renda per capita do RJ e o 7º IDH do Brasil. Tem uma área de 129,3 km2 e uma população de 514.000 pessoas. Isso quer dizer que é um município onde as pessoas têm um alto pode aquisitivo, tem uma área pequena e alta densidade populacional. Fatores que facilitam muitos a instalação dos serviços de saneamento. Contudo, Niterói não trata uma gota de água potável. É totalmente dependente da água tratada pela Cedae, empresa pública de saneamento do estado do Rio de Janeiro.

Assim, a empresa privada ficou livre dos custos de preservação de mananciais, barragens, de Estações Elevatórias, da adução de água bruta, da construção e manutenção de ETA (Estação de Tratamento de Água) e do tratamento de água. Para levar água até Niterói, a Cedae teve que construir cerca de 40 km de adutoras, desde a captação nos rios Macacu e Guapiaçu, no município de Guapimirim, tratar na ETA do Laranjal, em São Gonçalo e entregar nos reservatórios de água de Niterói.

Leia a matéria completa no site do Correio da Cidadania.

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