“A mulher negra é o grande foco das desigualdades sociais e de gênero existentes na sociedade brasileira. É nela que se concentram esses dois tipos de desigualdade, sem contar com a desigualdade de classes. O que percebemos é que, na nossa sociedade, as classificações sociais, raciais e sexuais fazem da mulher negra um objeto dos mais sérios estereótipos” – GONZALEZ, Lélia – Cultne DOC – Feminismo Negro no Palco da História

Quando se trata do Brasil, para além do pensamento freyriano da “democracia racial”, a observação de que a raça e o gênero são fronteiras da demarcação absurda da desigualdade de um povo em seu âmago estrutural pode ser vista até mesmo em método de análise demográfico, em pesquisas qualitativas ou quantitativas para definição de políticas públicas do Estado weberiano, como é no caso do IBGE, por exemplo.

A imaginação de um Estado idealista hegeliano onde o retrato da solução dialética se dá através da burocracia por meio de imagens e diagnósticos de uma determinada perspectiva para um determinado fim como se propõem algumas experiências do dito “Estado Social”, como na filosofia antropológica de Albert Camus discorre, ignora, portanto, as causas mais estruturais do cotidiano em suas particularidades e universalidades do humano, não se tratando aqui da confecção então de etnografias para a substituição da análise social como esperança de soluções mais humanitárias em suas singularidades e menos generalistas ou idealistas, mas de recorrer ao método da observação participante abalizado com o quê nossas memórias, vivências, imagens, relatos e retratos nos refletem – em nós mesmos para abstração do que se trata, em especial nessa temática, do saneamento – nas nossas memórias ou abstrações semióticas, as imagens de mulheres negras na beira dos rios com panos na cabeça e roupas nas mãos, ou estas mesmas mulheres negras com os mesmos panos entre cabeça e bacias ou potes de água morro acima e cansaço abaixo – metaforicamente aqui expressando o equilíbrio entre ter que carregar o peso do essencial mas sem deixar cair – também, estas mesmas negras em que muitas vezes quando com os mesmos baldes na cabeça, uma criança no braço, para além da certeza do território, os corpos negros de mulheres são invariáveis: em palafitas, nas comunidades ribeirinhas, no árido do nordeste, nos interiores, nos aglomerados, mulheres negras e a água é uma associação da imagem cotidiana que reflete muitas vezes o cerne de famílias, sejam como avós de netos sem pais, sejam como avós que cuidam de netos com os pais ausentes devido ao trabalho, sejam como mães solteiras ou  seja como trabalhadoras domésticas ou lavadeiras – as mulheres negras e o cuidado do trabalho domiciliar que historicamente, devido ao patriarcado não pode ser remunerado e permanece sim por vezes escravizado são sintomas da desigualdade agressiva e injustiça social.

Acrylic, Oil on Canvas, African women getting water from well painting – Jafeth Moiane, Mozambique, 2022.

Zora Neale Hurston, em Florida Memory, discorre que “pesquisa é curiosidade formalizada. É cutucar e bisbilhotar com um propósito. É uma busca para que quem deseja conheça os segredos cósmicos do mundo e daqueles que nele habitam”, fossemos aqui citar a primeira parte, de como pesquisas buscando alguma objetividade, até numérica – e como dito, não é suficiente – temos até mesmo aí essa bisbilhotamento do propósito ou do absurdo do racismo estrutural e de gênero quando se trata do saneamento: um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado em 2020, mostrou que as mulheres negras e solteiras são as que mais sofrem com a falta de saneamento básico. Segundo o estudo, 40% das mulheres negras não têm acesso à coleta de esgoto, contra 35% dos homens brancos. Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que atinge de forma desproporcional as populações mais vulneráveis, como negros, mulheres e pobres. Se levarmos adiante, a ausência do saneamento básico é um fator de risco para a saúde pública, evidentemente causando doenças como diarreia, cólera, hepatite A e leptospirose que levam até à morte – o controle dos corpos e sua definição existencial, ou seja, entre vida ou morte, é inclusive temática de Achille Mbembe, na necropolítica: “a expressão máxima da soberania reside em grande parte no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Matar ou deixar viver constitui assim os limites da soberania, os seus principais atributos. Ser soberano é exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” – portanto, a principal vítima em potencial de apagamento e silenciamento até da existência evidentemente conforme as próprias estatísticas, são as mulheres negras. Ainda sobre a expressividade dos números,  outro estudo, publicado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2023, mostrou que comunidades quilombolas no estado de Sergipe também sofrem com a falta de saneamento básico. O estudo mostrou que 80% das comunidades quilombolas não tinham acesso à água tratada e 70% não tinham acesso à coleta de esgoto. Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que afeta de forma grave as populações indígenas e quilombolas, que já enfrentam outros desafios, como a discriminação e a pobreza. A falta de saneamento básico também é um problema grave nas favelas. Um estudo da Mares, publicado em 2022, mostrou que as favelas têm um índice de saneamento básico 30% menor do que as áreas urbanas não faveladas. O estudo mostrou que apenas 30% das favelas tinham acesso à coleta de esgoto e apenas 50% tinham acesso à água tratada. Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que afeta de forma significativa as populações das favelas, que já enfrentam outros desafios, como a violência e a falta de oportunidades.

Washerwoman, Walnut Hills Historical Society, 1887

Demasiadas evidências no oceano do racionalismo transbordando águas suficientes para dizermos o óbvio de todos os dias, sejam em nossos empirismos ou nos dados objetivos – as mulheres negras, são os corpos que mais sofrem com a desigualdade, inclusive no saneamento básico. O absurdo no estado puro, assim como narrado no primeiro parágrafo, é a percepção de que estas mesmas mulheres negras que são os verdadeiros Sísifos na montanha, onde condenadas para todo o sempre não a empurrar uma pedra até ao cume de um monte, como no mito Grego, mas sim a carregar em suas cabeças baldes d’ água e nos braços crianças, montanhas acima, onde lá no topo, caindo a água invariavelmente da montanha sempre que este topo é atingido, se no mito do Sísifo este processo seria sempre repetido até à eternidade, como na antropomorfização do absurdo em si ou mesmo na alegoria da condição humana, é válido e humano, demasiadamente humano, perceber também que que a postura a adotarmos é a da revolta perante a esta situação de apagamento e silenciamento, em que o saneamento se insere como sintoma pois só assim, mediante a revolta dessa condição é que seremos capazes de dizermos uns aos outros essa terrível condição insuportável para parâmetros de justiça social, onde não é possível nenhum tipo de constatação de avanço sem o combate a esta assimetria estrutural, pois resta-nos a cada vez onde imaginamos, lembramos ou concluirmos que as principais vítimas das desigualdade, sobretudo no saneamento, são as mulheres negras, a associarmos ao espírito das indagações da célebre Maria Carolina de Jesus, que escreve em “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” , uma obra autobiográfica, publicada em 1960 que “Quem inventou a fome são os que comem”, digamos então, que quem inventou a sede, são os que bebem, e estes que parecem segregar cada vez mais as fronteiras do essencial para o(s) outro(s), principalmente quando o(a) outro(a) é mulher(es), e negra(s).

Artigo de Lucas Tonaco – secretário de Comunicação da FNU e dirigente do Sindágua-MG