Durante o lançamento internacional do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA 2018, em 29 de setembro do ano passado, em São Paulo, o Grupo de Mulheres do FAMA lançou uma Carta à sociedade, onde estimulam, de forma coletiva, o protagonismo feminino, criando as condições para sua efetiva participação em todos os espaços de decisão política e do processo de organização e de luta, assim como em mais este front de luta pelo direito à água – o FAMA 2018.

As mulheres urbanitárias subscrevem essa carta pois,como trabalhadoras do setor de água, saneamento e energia, estão totalmente integradas à luta contra a mercantilização desses direitos.
“Nos desafiamos cada vez mais a sermos protagonistas da construção de um mundo onde vigore a equidade e respeito às diversidades, que seja socialmente justo e ambientalmente sustentável.”

O documento aponta os desafios para as mulheres neste momento histórico. “Estamos vivendo um retrocesso democrático, de retirada de direitos sociais historicamente conquistados através da luta, de avanço acelerado de projetos neoliberais e aprovação de leis conservadoras que precarizam o trabalho, não respeitam a laicidade do Estado, destroem o território e meio ambiente, e ameaçam a soberania nacional e dos povos. Frente a isso, não temos dúvidas de que novamente as mais prejudicadas serão as mulheres”.

CARTA DAS MULHERES

Nós, mulheres integrantes do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA 2018 -, protagonistas da construção do feminismo popular, reafirmamos a necessidade de discutir que água é direito, não mercadoria, agregando a este tema a visão da luta pela igualdade de gênero. Isso porque vivemos em um modelo de sociedade capitalista, imperialista, colonial, racista e patriarcal, onde as empresas transnacionais controlam a economia, apropriando-se da natureza e da vida dos seres humanos, das tecnologias, da força de trabalho, de nossos territórios e corpos, com um único objetivo – o de acumular riquezas à custa da exploração dos trabalhadores, em especial das mulheres trabalhadoras.

Este modelo de desenvolvimento força a hegemonia de um padrão de vida, baseado no individualismo, na competição, no consumismo, onde tudo se torna mercadoria. Esse modelo, que ainda tem como características a opressão e a violência contra as mulheres, faz com que tenhamos uma dupla jornada de trabalho, com empregos de menor prestígio e remuneração, além de nos exigir um padrão de beleza baseado no consumismo e na aparência branca normativa, violando nossa autoestima. É um modelo injusto e insustentável, e que põe em risco a vida do planeta e dos seres humanos.

E, dentro deste modelo de sociedade capitalista, racista e patriarcal, somos nós, mulheres, as mais atingidas e impactadas pela falta de acesso à água e ao esgotamento sanitário. Direitos que são negados pela lógica da mercantilização e pela omissão dos poderes públicos. Segundo a ONU, o tempo que mulheres e meninas em todo o mundo gastam para coletar água chega a 200 milhões de horas/dia.

Em momentos de crise hídrica, relacionados principalmente à má gestão governamental ou de empresas privadas, somados à divisão sexual do trabalho que ainda impõe às mulheres as tarefas domésticas – sem avançar suficientemente para o compartilhamento igualitário – somos nós que temos que (re)organizar toda a rotina da casa, da higiene e da saúde de todos da família, e ainda somos cobradas pelos governos e/ou pelas empresas de saneamento por supostos abusos no consumo de água – como se a escassez, desperdício ou falta de  manutenção das redes fosse culpa nossa, e não dos problemas de má gestão para “economizar investimento”. Isso sem falar na violação dos direitos à terra e demais problemas específicos enfrentados pela população urbana, pelas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, extrativista, atingidas por barragens e mulheres periféricas devido à construção de grandes obras e projetos em geral, seja no campo ou na cidade, que visam à apropriação e à privatização das nossas riquezas naturais, como o caso da água.

Aqui, vale destacar que a violação dos direitos humanos na vida das mulheres atingidas por barragens e intervenções como os processos de gentrificação dos territórios da cidade, por exemplo, contribuem para o aumento absurdo da violência e exploração sexual, para além da violência doméstica – válvula de escape do sistema machista e patriarcal; na perda do trabalho e do vínculo com a comunidade, na quebra dos laços familiares, da terra de origem e seus lugares sagrados, na negação do direito à participação política nos espaços de decisão e no não reconhecimento da mulher como atingida, uma vez que o conceito de “atingidos” usado pelas empresas é um conceito patrimonialista, racista e patriarcal.

Para as mulheres, neste momento histórico, os desafios aumentam. Estamos vivendo um retrocesso democrático, de retirada de direitos sociais historicamente conquistados através da luta, de avanço acelerado de projetos neoliberais e aprovação de leis conservadoras que precarizam o trabalho, não respeitam a laicidade do Estado, destroem o território e meio ambiente, e ameaçam a soberania nacional e dos povos. Frente a isso, não temos dúvidas de que novamente as mais prejudicadas serão as mulheres.

Diante de tudo isto, nós, mulheres integrantes do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA 2018 -, temos certeza de que precisamos nos unir nesta luta e fortalecer nossa participação na construção do FAMA em todos os cantos do mundo. Precisamos, de forma coletiva, estimular o protagonismo das mulheres, criando as condições para sua efetiva participação em todos os espaços de decisão política e do processo de organização e de luta, também em mais este front de luta pelo direito à água.

Por fim, pela memória da Nicinha[1], de Berta Cárceres[2], das mulheres vítimas do crime da Samarco (Vale e BHP Billiton) na bacia do Rio Doce[3] e de tantas outras mulheres lutadoras, nos desafiamos cada vez mais a sermos protagonistas da construção de um mundo onde vigore a equidade e respeito às diversidades, que seja socialmente justo e ambientalmente sustentável.

Água e mulheres não são mercadorias!

Água para vida, não para morte!

[1] Nilce de Souza Magalhães, mais conhecida como ‘Nicinha’, mãe de três filhas, avó de sete netos, pescadora e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Rondônia. Lutava em defesa da vida, do rio e da floresta, era ribeirinha da beira do rio Madeira, de onde lutava para jamais sair. Atingida pela Hidrelétrica de Jirau. Foi assassinada em janeiro de 2016 e jogada dentro do rio Madeira, seus restos mortais foram localizados após cinco meses do seu assassinato.

[2] Berta – reconhecida mundialmente por sua luta com os povos indígenas, camponeses e em temas ambientais – foi abordada por um grupo de homens armados enquanto dormia em sua casa, em La Esperanza, Honduras, na madrugada do dia 3 de março de 2016.

[3] É conhecido por todos o crime ocorrido em 5 de novembro de 2015, com o rompimento da barragem de rejeitos da mineração da empresa Samarco (Vale – BHP), causando uma das maiores tragédias socioambientais da história do Brasil, destruindo comunidades inteiras, roubando vidas, interferindo no modo de produção tradicional da região, inviabilizando a pesca e tornando um rio totalmente morto. Se analisarmos a perspectiva de construção de relações entre homem e a natureza na promoção de um espaço harmônico ao desenvolvimento saudável e sustentável os impactos na dinâmica social e ambiental de toda Bacia do Rio Doce são graves e imensuráveis.

PARTICIPE DO FAMA2018!

A Federação Nacional dos Urbanitários – FNU -, que apoia e integra a coordenação nacional do FAMA 2018, subscreve o Manifesto do Fórum Alternativo Mundial da Água por entender que “água deve estar a serviço dos povos de forma soberana, com distribuição da riqueza e sob controle social legítimo, popular, democrático, comunitário, isento de conflitos de interesses econômicos, garantindo assim justiça e paz para a humanidade”.

Água é um direito, não mercadoria!