?Da série: PRIVATIZAR NÃO É SOLUÇÃO
O exemplo de Manaus.  Leia o artigo de Sandoval Rocha*:?

A privatização desastrosa do saneamento

Há 22 anos Manaus privatizou os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Imposta pelo Ex-governador Amazonino Mendes e o Ex-prefeito Alfredo Nascimento, a privatização destes serviços foi baseada em um contrato marcado pelo sistemático descumprimento das metas e pelo desprezo à sociedade manauense. A população foi iludida pelas promessas dos políticos em questão e pressionada pelos interesses econômicos dos empresários do saneamento.

Os vícios no processo de concessão foram evidenciados na época por inúmeras lideranças e organizações, dentre elas o Ministério Público do Estado do Amazonas, que denunciou as ilegalidades junto ao poder judiciário. Tais denúncias impactaram significativamente a negociação em curso, acarretando inúmeras suspensões do leilão na Bolsa de Valores de Rio de Janeiro. Entre as ilegalidades destacam-se a desvalorização do patrimônio público, a falta de transparência e o favorecimento da iniciativa privada em detrimento do interesse público.

Parte das ilegalidades do contrato foi equacionada somente em 2015, quando o Tribunal de Justiça do Amazonas anulou cláusula que permitia o poder municipal usar recursos públicos para melhorar o sistema de água e esgoto durante a gestão privada. O magistrado condenou a cláusula, entendendo que é inconcebível que o Estado assuma os gastos do saneamento enquanto a iniciativa privada somente administre e se aproprie dos ganhos provenientes do negócio. Para o juiz, se a iniciativa privada quer lucrar, ela tem a obrigação de investir, recorrendo dos seus próprios recursos.

O contrato de concessão garantiu que no final do ano 2000, a rede de abastecimento de água seria acessada por 91% da população e os serviços de esgotamento sanitário cobririam 11% da cidade. O engodo do contrato foi logo evidenciado quando, na data prevista, os serviços atingiram somente a cobertura de 72,49% de abastecimento de água e 3,05% de esgotamento sanitário (ARSAM, 2004). A farsa da privatização estava exposta! Tratava-se de um contrato de fachada, como ficou evidenciado posteriormente.

Ao perceber que tinha sido enganada, a população tomou as ruas da cidade, os meios de comunicações escancararam a ineficiência da gestão privada, os processos judiciais multiplicavam-se no Tribunal de Justiça e o Ministério Público pressionava pela implantação do direito à água e ao saneamento. Nesta época também não faltaram políticos para tirar proveito da situação, inclusive aqueles que impuseram a famigerada privatização.

Sem nenhuma coibição, a gestão privada continuou desrespeitando o contrato de concessão. O documento estabelecia que em 2011, a cobertura de abastecimento de água chegaria a 98% da população e os serviços de esgotamento sanitário atingiriam 51% da cidade. No entanto, a realidade era bem diferente. Neste ano, a empresa ofereceu somente 95,58% de cobertura de abastecimento de água e 26,80% de cobertura de esgotamento sanitário (SNIS, 2011).

A esta altura, o fiasco da privatização e a frustração da população eram patentes. Diante do escárnio com a população e perante a negável irresponsabilidade da empresa de saneamento, o poder legislativo municipal saiu da indiferença e instaurou comissões parlamentares de inquéritos (CPI 2005 e CPI 2012) para investigar o caótico saneamento da cidade. Como resultado das investigações, a Câmara dos Vereadores de Manaus recomendou a imediata quebra do contrato de concessão, mas foi ignorada pelo executivo municipal, que se manteve surdo aos apelos das ruas.

Em 2016, as deficiências da privatização do saneamento são novamente expostas ao público. Neste ano, o contrato de concessão previu uma cobertura de 98% de abastecimento de água e 71% de esgotamento sanitário na cidade. A realidade apontou para uma situação distinta. O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) revela que naquela época a gestão privada alcançou somente 87,79% de cobertura de abastecimento de água e 10,18% de cobertura de esgotamento sanitário.

O desempenho obtido pela atual concessionária tem confirmado a enganação da concessão privada de saneamento na cidade de Manaus. Diversos órgãos de fiscalização constatam a irresponsabilidade da empresa, tais como o Instituto de Defesa do Consumidor (Procon-AM) e a Defensoria Pública do Estado do Amazonas. O primeiro elabora ranking anual das empresas mais reclamadas da cidade, revelando que a concessionária de Águas de Manaus aparece invariavelmente na liderança ou vice-liderança das piores empresas.

Quanto à Defensoria Pública do Estado, há uma decisão recente obrigando que a concessionária Água de Manaus cadastre todas as famílias que têm direito ao benefício da Tarifa Social, uma vez que somente metade destas famílias tem usufruído deste direito essencial. Outra importante luta deste órgão diz respeito à denúncia de cobrança excessiva sobre os serviços de esgotamento sanitário. Estes serviços, além de serem excessivamente caros, são acessados por uma parte reduzida da população (19,9% de acordo com o SNIS/2019), transformando um direito universal em privilégio de poucos.

A trajetória da privatização dos serviços de abastecimento de água e esgoto em Manaus mostram que o objetivo principal da iniciativa privada neste setor é ampliar lucros e rendimentos em detrimento das comunidades, principalmente as mais pobres. De fato, portal de notícias da Agência Reguladora Municipal informa que a empresa tem ampliado em 93% o seu lucro líquido somente nos últimos dois anos. A empresa lucrou neste período 1,55 bilhão de reais, mas não satisfeita com tal rentabilidade, ela busca reajustar as tarifas dos serviços para níveis superiores ao que a população pode pagar.

A privatização do saneamento em Manaus mostra os perigos que o mercado impõe à cidadania e aos direitos humanos. O mercado busca gerar lucros e a cidadania pertence à lógica da solidariedade e da promoção da vida e da democracia. É próprio do mercado excluir aqueles que não têm dinheiro para comprar. Faz parte da cidadania promover o direito aos serviços mais básicos.


*Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG). Membro da Companhia de Jesus (Jesuíta), atualmente é professor da Unisinos e colabora no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), sediado em Manaus/AM.

Publicado originalmente em Amazonas Atual.