Um bilhão de pessoas no mundo não têm acesso à quantidade de água suficiente para abastecimento mínimo diário, que é de 20 litros por dia – segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 60% da população mundial (4,5 bilhões de pessoas) não têm acesso ao saneamento básico. Além disso, 80% do esgoto no mundo é lançado sem tratamento. Desde 2015, no entanto, a água é considerada um direito humano. Isso é fato.
Fato também tem sido o emprego das expressões “privatização” e “mercantilização da água”, ouvidas com muita frequência nos últimos tempos, demonstrando ser essa uma das maiores preocupações da luta em preservação desse bem natural.
No Brasil, a privatização da água e do saneamento está na pauta dos grandes debates nacionais, como já ocorreu em outros países há cerca de duas décadas, quando decidiram privatizar seus serviços públicos do setor.
Agora, levantamentos internacionais apontam que a privatização do setor de fornecimento de água em muitas cidades, principalmente na Europa, vem sendo revista por não trazer os benefícios esperados, ou aumentar a conta para o cidadão. Em todo o mundo, 835 casos de retomada do controle sobre serviços públicos por governos locais, dos quais 267 se referem à gestão da água, no período de 2000 a 2017, segundo dados do Transnational Institute (TNI). Essa remunicipalização do fornecimento de água ocorre sobretudo na França, onde há 106 casos. A capital, Paris, é o caso mais emblemático.
Movimentos sociais no Brasil, principalmente a partir da realização do Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA, colocaram em suas agendas de luta a água e o saneamento como direitos de todos que precisa ser defendido.
O relator Especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas, Leo Heller, ressalta que no escopo jurídico internacional usa-se a expressão “direitos à água e ao saneamento”, no plural, esclarecendo que a separação entre os direitos ao saneamento e ao acesso pode ajudar na construção de estratégias diferenciadas de redução das lacunas. “Existe uma desigualdade muito maior em relação ao saneamento. Mas a separação como direitos distintos pode ser útil para fins práticos”, considera.
Porém, a disputa pela água não se dá somente no nível dos discursos. Durante a realização dos fóruns internacionais que discutiram a questão da água, em março de 2018 (FMA – Fórum Mundial da Água – e FAMA – Fórum Alternativo Mundial da Água), um grupo de aproximadamente 600 mulheres, ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, ocupou uma fábrica de água mineral da Nestlé, na cidade de São Lourenço, no Sul de Minas Gerais. Segundo o MST, a unidade da companhia foi alvo do protesto porque a exploração da água no município, conhecido nacionalmente por suas reservas hidrominerais, afetou a disponibilidade do líquido aos moradores. “Antes de ser privatizada, a água era amplamente utilizada para tratamentos medicinais. Além da redução da vazão, nota-se a mudança no sabor da água, ou seja, a exploração está fazendo com que [a água] perca seus sais minerais”, informa um comunicado do movimento.
No Brasil, o direito à água também passa pela defesa da Lei das Águas (Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997), que estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos, e é considerada pelos especialistas um bom exemplo de gestão de recursos hídricos. Essa lei vem sendo ameaçada por projetos de leis em tramitação no Congresso Nacional e que preveem alterações em seus princípios.
O primeiro dos fundamentos da Lei em vigor é de que a água seja considerada um bem de domínio público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico. O segundo ponto estabelecido pela lei é de que a gestão dos recursos hídricos deve proporcionar os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, contando com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades. Ela também prevê que, em situações de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo humano e para a dessedentação de animais.
Em um contexto de mudança climática (que reduz a oferta) e de demanda mundial por água que cresce 1% ao ano, de acordo com o relatório da Unesco lançado em março de 2018, o Brasil é considerado um país privilegiado, já que detém 12% de toda a água doce superficial disponível no planeta. Por esse mesmo motivo, é que precisamos defender nosso patrimônio, lutar para garantir o direito à agua e ao saneamento básico para todos os brasileiros, com qualidade e modicidade tarifária, além de ampliar a coleta e tratamento dos esgotos e a despoluição dos corpos d’água.
O debate sobre água e sua privatização requer ampla articulação dos vários seguimentos da sociedade civil, como movimentos sociais, populares e sindicais, gestores, igreja, entre outros. Só assim poderemos garantir que o direito à água seja efetivamente cumprido.
Silvana Cortez é jornalista, atuou como comunicadora no Fórum Alternativo Mundial da Água – FAMA 2018