artigo: Ronaldo Bicalho*

“Ressuscitar uma agenda de trinta anos atrás, que privilegia a privatização e a competição, para responder os atuais desafios do setor elétrico brasileiro, além de ser completamente extemporâneo, denota uma ignorância completa e profunda sobre a natureza desses desafios e a sua estatura.”

Para entender o tamanho do desafio enfrentado pelo setor elétrico brasileiro é preciso compreender a natureza única desse setor. Para isso, é necessário identificar a maneira pela qual nós respondemos as três questões fundamentais envolvidas na construção do nosso sistema elétrico.

A primeira delas é bastante simples: Nós vamos gerar eletricidade a partir do quê? No caso brasileiro, a resposta dada foi que nós iríamos gerar eletricidade a partir da energia hidráulica dos nossos rios e das nossas quedas d’água.

Definida a energia hidráulica como a fonte básica de geração de eletricidade, a segunda questão que se colocou naturalmente foi: O que nós faremos no caso de faltar a água necessária para gerar a eletricidade que nós precisamos? Ou, em outras palavras, o que nós faremos se não chover? A resposta para essa questão foi que, caso não chovesse, nós iríamos usar a água que estava guardada nos reservatórios das usinas – armazenada nos períodos chuvosos justamente para ser utilizada nos períodos secos. Dito de outra forma, para enfrentar o risco hidrológico – ou seja, o risco de não chover – nós iríamos construir hidrelétricas com grandes reservatórios de acumulação.

A terceira questão fundamental na construção do setor elétrico brasileiro, intrinsecamente ligada às duas anteriores, foi: Como nós vamos gerir esses reservatórios? A resposta a essa questão foi que essa gestão seria centralizada e otimizada, de forma a auferir as economias de escala, de escopo e de diversidade proporcionadas pela coordenação das decisões de curto e de longo prazo associadas à operação e expansão do conjunto de reservatórios. Enfim, nós iríamos pensar esse conjunto de reservatórios como uma única e imensa caixa d’água na qual, graças à diversidade climática proporcionada pela nossa geografia, sempre, de uma forma ou de outra, em algum lugar, estaria entrando água.

Neste sentido, os três elementos essenciais na construção do setor elétrico brasileiro foram: energia hidráulica, reservatórios e forte coordenação. Sobre eles é que foi construída a base que sustentou todo o nosso setor durante praticamente toda a sua existência.

A partir dos anos 1990s, um conjunto de eventos passou a solapar essa fundação. O primeiro deles foi a adoção de uma política energética para o setor elétrico baseada na liberalização do mercado elétrico, pautada essencialmente pela privatização e introdução da competição nos mercados elétricos. A principal consequência dessa adoção foi a forte fragmentação do setor, em termos de agentes, interesses e organizações setoriais, que desestruturou a base institucional tradicional, que permitia a coordenação das decisões de curto e de longo prazo, sem ter sido capaz de substituí-la por uma nova que fosse realmente eficaz na coordenação do nosso singular setor elétrico.

O segundo evento foi o surgimento de fortes restrições, principalmente ambientais, à construção de reservatórios que, concretamente, reduziu drasticamente a capacidade de regulação do sistema, deixando-o cada vez mais exposto ao risco hidrológico.

O terceiro evento foi a natural exaustão do potencial hidráulico; agravada pela concentração do potencial restante na Amazônia, com sua exploração marcada por fortes restrições ambientais, políticas e sociais.

Dessa maneira, o tripé – energia hidráulica, reservatórios e coordenação – que formava a base de sustentação do nosso modelo elétrico, simplesmente se desmanchou e passou a colocar em risco todo o edifício elétrico brasileiro construído sobre ele.

Portanto, o problema do setor elétrico brasileiro não é conjuntural. O nosso problema não é fruto das afluências desfavoráveis (leia-se São Pedro), da má gestão empresarial, privada ou estatal, ou regulatória. Não se trata de uma questão de ineficiências de operação de um dado modelo. Trata-se de um problema estrutural. Trata-se de um problema de concepção básica, associado a uma pauta de política energética de definições estruturantes de longo prazo, que, no limite, remete à questão essencial da política energética: como atender as necessidades energéticas a partir da definição dos recursos disponíveis. Ou seja, voltamos à primeira questão: Nós vamos gerar eletricidade a partir do quê?

Em suma, o problema do setor elétrico brasileiro hoje é conceber um novo setor elétrico a partir de uma nova base de recursos. Isto por si só já é um grande desafio. Se o colocarmos no contexto de um setor elétrico que no mundo também está em um processo de mudanças profundas, temos a ideia exata do tamanho do desafio que estamos enfrentando. Desafio esse que, pelas suas fortes implicações sobre a segurança energética do País, demanda a forte presença do Estado na mobilização estratégica dos recursos técnicos, econômicos e institucionais necessários ao seu enfrentamento.

Nesse sentido, ressuscitar uma agenda de trinta anos atrás, que privilegia a privatização e a competição, para responder os atuais desafios do setor elétrico brasileiro, além de ser completamente extemporâneo, denota uma ignorância completa e profunda sobre a natureza desses desafios e a sua estatura.

No entanto, seria pedir demais dos agentes do setor, encaixotados em suas agendas individuais e tentando passar à frente os enormes micos financeiros resultantes da falência do modelo setorial, e das instituições encarregadas de estrutura-lo, fragilizadas pelo desmonte institucional que atravessa o País, lucidez e visão estratégica no enfrentamento de tamanho desafio.

Nesse contexto, tirantes ingênuos e vigaristas, quem tem o mínimo de senso e responsabilidade deve se preocupar seriamente com os tempos que virão pela frente para o setor elétrico brasileiro.

*Ronaldo Bicalho: pesquisador do IE-UFRJ e Diretor do Instituto Ilumina

Artigo reproduzido de GGN

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