A profunda crise fiscal pode provocar consequências para o futuro do Brasil ainda não percebidas. No pacote de soluções, a Eletrobras e suas subsidiárias, estão na lista de empresas que serão privatizadas. Mesmo considerando diferenças entre privatização pura e simples e a “capitalização” via perda de controle do Estado, o Brasil sairá de um seleto clube de países que contam com a hidreletricidade como base principal de sua matriz elétrica e, que, por isso mesmo, mantêm essas empresas sob o controle público.
Segundo dados do World Economic Forum, China, Brasil, Canadá, Estados Unidos, Rússia, Noruega, India, Suécia, Venezuela e Japão são os 10 líderes da produção de hidreletricidade. Dentre esses, apenas Brasil, Canadá, Noruega, Suécia e Venezuela têm mais de 50% de sua energia nas usinas hidráulicas. O Japão é o único privado, mas suas hidráulicas respondem por apenas 7% da demanda. Portanto, com toda essa singularidade, caso o Brasil privatize a Eletrobras, será o único que adotou essa política. Será que os outros estão errados? Será que a luta contra a corrupção não é suficiente para permitir que tenhamos empresas públicas?
Se a privatização fosse uma experiência inédita no Brasil, poderíamos nos perdoar por cometer erros. Todavia, o Brasil já teve um largo processo de privatização na década de 90. Segundo dados do BNDES de 2008, a receita total das desestatizações desde 1990 chegou a US$ 106 bilhões. A venda incluiu siderurgia, petroquímica, mineração, energia, saneamento, petróleo e gás, telecomunicações, financeiro e transportes. Ao contrário do esperado, a dívida pública bruta subiu de 37% para 67% do PIB no período 1995 até 2006. A carga fiscal subiu de 24% para 33%. Portanto, sem demonizar a privatização, é preciso saber que dilemas levaram um país a vender tantos setores e ainda permanecer com graves desequilíbrios financeiros e desastres como os de Brumadinho.
A primeira dúvida que surge é a capacidade de estabelecer um sistema de regulação e fiscalização eficiente. Comparação das nossas agências reguladoras com o sistema americano nos deixa com sérias dúvidas se sabemos privatizar. No setor elétrico, o FERC (Federal Energy Regulatory Comission) tem o triplo de especialistas da Aneel e ele nem significa a totalidade do sistema regulador, pois vários estados têm agências independentes.
Esse assunto é essencial, pois dados históricos coletados na Aneel mostram que, no período 1995 – 2018, a tarifa média residencial subiu 60% acima da inflação. A tarifa industrial (das distribuidoras) superou o IPCA em 130%. Esses dados deveriam nos fazer entender que só vender empresas não significa um processo com objetivo público.
O curioso é que também se imagina um futuro cenário radicalmente diferente da nossa experiência dos últimos 20 anos quanto à independência e pujança do setor privado. No caso do setor elétrico, dados do BNDES e da Eletrobras mostram que, nesse período, cerca de R$ 300 bilhões se originaram de empréstimos ou de parcerias com a estatal. Nos últimos 10 anos essa sujeição se acentuou atingindo cerca de R$ 20 bilhões/ano. Portanto, se esses dados significam alguma coisa, a ausência da Eletrobras e a redução de apoio do BNDES podem gerar uma desagradável surpresa.
O que muitos não entendem é que, mêsmo com um crescimento da economia bem abaixo de países como a Coreia do Sul ou a China, o Brasil necessita no mínimo de 2.000 MW médios novos todos os anos. Isso significa duas usinas como Itumbiara de Furnas por ano, simplesmente a 9ª maior usina brasileira. Portanto, o mercado, que funciona bem em estabilidade, precisa ter mecanismos para contratar seu futuro. O nosso não os têm.
Quando o modelo admite que o mercado livre, que já representa 30% do consumo, capture as vantagens das hidrologias exuberantes ou de sobras, instala-se um ambiente que não incentiva a contratação de longo prazo. Resultado desse desinteresse, de 2008 até 2012, o consumo total ultrapassou os níveis de garantia e, se não fossem as sociedades privadas feitas com a Eletrobras, dois anos chuvosos e a contratação de térmicas caras, nós teríamos passado por um grande aperto no suprimento.
Na realidade, a Eletrobras sempre foi usada para remediar problemas do processo de privatização e mercantilização da energia. Primeiro foi obrigada a comprar distribuidoras rejeitadas pelo mercado na década de 90. Herdou as empresas do Piauí, Alagoas, Acre, Rondônia e Roraima, enquanto o setor privado acolhia as empresas de estados menos problemáticos. Depois do racionamento, por gerar hidreletricidade, foi obrigada a perder contratos e gerar energia por valores ínfimos capturada pelo mercado livre.
Em seguida, é usada para alavancar interesse de investidores privados com as parcerias e, por último, sofre praticamente sozinha a desastrada intervenção para reduzir tarifas artificialmente (MP 579) no governo Dilma. A marca registrada de todos esses passos é o sacrifício de receita da Eletrobras e a liberação do setor privado de qualquer responsabilidade ou esforço.
Com essa trajetória, injustamente e sem o devido cuidado nas comparações, a empresa é rotulada de “ineficiente”, inclusive com a depreciação sobre seu corpo funcional. Basta consultar os dados das maiores geradoras mundiais no site www.power-technology.compara perceber que a estatal brasileira é a que tem menos empregados por capacidade instalada. Chega a menos da metade da EDF na França e da EON na Alemanha.
É preciso lembrar que o setor privado virá comprar ativos existentes. Como aconteceu na década de 90, nada novo será construído. Agora, dificilmente ocorreria um racionamento, pois a demanda está estagnada e temos uma “oferta” cara de térmicas. Mas é bom lembrar que o interesse do capital está associado ao desmonte da tarifa imposto pela intervenção da MP 579. Pode-se imaginar o que ocorrerá quando cerca de 14.000 MW deixarem de custar R$ 40/MWh e passarem a cobrar R$ 200/MWh.
Em 2016, a Agência Internacional de Energia, numa comparação de tarifas internacionais, usando o método de paridade do poder de compra, o único realmente válido, nos colocou como o 3º país de energia elétrica mais cara.
Será que queremos ser campeões nisso também?
Texto publicado no jornal Monitor Mercantil em 16/07/2019. Disponível em https://www.valor.com.br/opiniao/6351105/o-risco-de-um-brasil-sem-eletrobras