Segundo Leo Heller, quando a estiagem se converte em escassez de água denota-se falta de planejamento

Embora mudanças climáticas possam intensificar crises hídricas, dizer que foi pego de surpresa por elas não é uma desculpa aceitável, diz o relator especial da ONU para o direito humano à água e ao saneamento, o brasileiro Leo Heller, no cargo desde 2014.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em neste domingo (15/4), Heller diz que: “quando a estiagem se converte em escassez de água, como na Cidade do Cabo, em Brasília e em São Paulo, em 2014, isso denota falta de planejamento.”

Leo Heller

Ainda segundo o relator, que também é pesquisador da Fiocruz, agentes no setor de água e esgoto têm dificuldade em aceitar que a água seja tratada como direito humano. “Significa trazer para o setor de água e saneamento conceitos dos direitos humanos, como disponibilidade, qualidade, acessibilidade física e financeira, ou seja, as pessoas não podem ter água negada por não poder pagar”, afirmou Heller.

Folha – Vivemos um aumento na ocorrência de crises hídricas ao redor do mundo. O que leva a esse problema?
Leo Heller – Muito provavelmente as mudanças climáticas estão levando à intensificação desse processo. Quando acontece uma baixa de volume nos rios e aquíferos, chamamos de estiagem. E, quando as pessoas não têm água, é escassez. Apesar de serem palavras parecidas, não são sinônimas. A estiagem pode se converter em escassez, como na Cidade do Cabo, em Brasília e em São Paulo, em 2014. Isso denota falta de planejamento dos gestores. Penso que não é mais aceitável um discurso ou a desculpa de que as pessoas foram pegas de surpresa por causa de mudanças climáticas, que são um fenômeno conhecido. Outra questão importante é como a escassez é gerenciada. O que tenho observado em várias partes do mundo são as populações mais pobres e vulneráveis, que pagam mais para ter acesso à água e vão receber menos. Isso é inaceitável do ponto de vista dos direitos humanos e denota um retrocesso no acesso à água.

Entidades defenderam, nos fóruns, a água como um direito humano. Afinal, o que é isso?
Parece um conceito óbvio, mas não é consensual. Existem agentes no setor que têm dificuldades em aceitar. A água como direito humano foi aprovada em resolução da Assembleia Geral da ONU em 2010, mas não por consenso. Houve 123 votos a favor e 41 abstenções. Dois anos antes, foi apresentada uma resolução que foi rejeitada. Uma das razões era a visão equivocada de que água como direito humano significa dar água de graça. Ter água como direito humano significa trazer para o setor de água e saneamento conceitos dos direitos humanos como disponibilidade, qualidade, acessibilidade física e financeira, ou seja, as pessoas não podem ter água negada por não poder pagar.

Em tempos em que direitos humanos são questionados, a noção da água como um direito humano também sofre?
Mais ainda. Os direitos humanos têm uma tradição forte dos direitos político-civis. São direitos no imaginário da população. Há outra geração dos direitos econômicos, culturais e sociais, que incluem direito à água e ao saneamento, à moradia, saúde, educação. Esses têm menos visibilidade.
A população geralmente pensa nisso como se fossem políticas públicas. Não deixam de ser, mas a noção dos direitos humanos confere uma lente sobre a prestação desses serviços. E ela nos revela, entre outras coisas, a discriminação de acesso, padrão fortíssimo em todo o mundo. Dados mostram que quase sempre a população rural tem acesso menor a esses serviços do que a urbana. Assentamentos informais [vilas, favelas e ocupações] sempre terão um acesso menor do que os convencionais.

Mas isso não se deve às barreiras estruturais de levar saneamento a esses lugares?
Os ingleses têm uma expressão que é ‘business as usual’, ou seja, fazer o trabalho como sempre. Isso está na cabeça dos engenheiros e dos operadores: vamos primeiro atender a população que está mais concentrada nos grandes centros e depois expandimos. Na cabeça de quem pensa nesses serviços como mercadoria, o pensamento é ‘nós vamos colocar o serviço primeiro para quem pode pagar e por último para quem não pode, ou até nunca vamos colocar’. Essa visão é dominante no setor.

Dez anos após a lei do saneamento, por que o Brasil avançou tão pouco no setor?
A resposta não é simples e vem de um conjunto de fatores. Talvez o mais importante seja a continuidade e estabilidade das políticas. Saneamento não é algo que um governo decida e dali a dois anos está tudo pronto. É algo continuado. Quando há descontinuidade de investimentos, o setor se desmobiliza. E, para recuperar isso, é uma década. Tivemos um avanço interessante a partir de 2005 até 2013. Foi aprovada a lei do saneamento, criado o Ministério das Cidades, a secretaria nacional do saneamento, a Funasa melhorou sua organização. Essa janela de melhorias deveria ter continuado. Os países desenvolvidos não têm essa instabilidade. Se existe um eixo de ação [na mudança de políticos], ele muda 10 graus. No Brasil mudamos 180 graus a cada troca de prefeito.

O senhor fiscaliza políticas sobre água no mundo. Que situações têm encontrado?
Já visitei países de desenvolvimento médio, na Ásia, África, América Central e um desenvolvido, que foi Portugal. Cada um tem suas particularidades, mas há problemas comuns. Um deles é o acesso da população rural, muito mais baixo que o da população urbana. Ou pessoas em situação de rua, em geral invisíveis aos gestores e sem pontos suficientes para acesso à água. Recebo denúncias tanto de países pobres quanto de ricos.

Em 2014, o governo paulista pediu retratação à ONU após sua antecessora, Catarina de Albuquerque, apontar falhas na crise hídrica em São Paulo. Represálias são constantes?
Ficamos muito expostos a represálias e pressões. Na minha visita à Índia [onde encontrou falta de acesso à água à população de rua], o governo não gostou do relatório e foi à imprensa me criticar. Mas temos uma função independente e precisamos estar preparados para reações como essa. O caso da Catarina foi um extremo maior. O governador de SP fez uma comunicação para o secretário-geral da ONU sugerindo que ela teria sido injusta com o Brasil. Isso é absolutamente inócuo, porque o secretário-geral da ONU não tem o poder de destituir nosso mandato. O Conselho de Direitos Humanos sim, mas não vai destituir o mandato porque estamos lutando pelos direitos humanos.

O que podemos esperar no futuro em relação à água?
A boa novidade são os objetivos de desenvolvimento sustentável [que trazem como meta da ONU o acesso universal à água potável e saneamento até 2030]. Prefiro ser otimista e acreditar que melhoraremos, que as pessoas passarão a receber água com mais qualidade e preço acessível. Hoje temos consciência da necessidade de isso acontecer rapidamente. (fonte: Folha de S. Paulo)