A privatização da DESO em Sergipe, sob a bandeira da Iguá Saneamento em maio de 2025, trouxe uma calmaria midiática que intriga e preocupa. Onde antes ecoavam diariamente notícias de falhas, desabastecimento e indignação pública, agora parece pairar um silêncio ensurdecedor, pontuado apenas por releases otimistas e visitas protocolares. A conta, por ora, não subiu – mas será que os problemas crônicos do saneamento sergipano se evaporaram num passe de mágica? A história recente do Brasil nos ensina a desconfiar desse “milagre” repentino. O que vemos não é o fim das mazelas, mas uma mudança radical na dinâmica da informação. Empresas privadas, ágeis em gestão de crise e relações públicas, dominam a arte de conter vazamentos não só de água, mas principalmente de más notícias. Acordos de confidencialidade, pressão sobre a mídia local e uma comunicação estratégica focada no positivo substituem o noticiário crítico que acompanhava a gestão pública ineficiente.
Esse fenômeno não é exclusivo de Sergipe. É um roteiro repetido à exaustão em cidades onde o saneamento foi entregue à iniciativa privada: a turbulência midiática pré-privatização, que servia inclusive para justificar a venda como “solução necessária”, dá lugar a um aparente mar de tranquilidade pós-venda. O barulho das torneiras secas e dos esgotos a céu aberto é abafado por uma cortina de eficiência gerencial e discursos de modernização. A pergunta que fica é: quem perde o direito de reclamar quando a reclamação some dos holofotes? As comunidades periféricas, os bairros esquecidos, continuam sofrendo na invisibilidade? O silêncio, nesses casos, não é sinônimo de solução, mas muitas vezes de uma opressão mais sofisticada.
O verdadeiro teste, no entanto, virá com o passar do tempo e o ajuste fino da lógica do mercado sobre um bem essencial à vida: a tarifa. A promessa inicial de manutenção de preços é um clássico do manual de privatizações. A experiência nacional é clara: após o período de “garantias” e transição, as tarifas tendem a subir, pressionadas pela necessidade de retorno aos acionistas, investimentos (muitas vezes repassados ao consumidor) e pela própria lógica de lucratividade. A água, transformada em commodity, tem seu preço ditado não apenas pelo custo de produção e distribuição, mas pela margem de lucro exigida. Quando o balanço financeiro fala mais alto que a sede da população, o “milagre” mostra sua face mais perversa: o acesso pode se tornar um privilégio, não um direito.
E nesse complexo tabuleiro, surge uma figura paradoxal: o BNDES. Sob um governo que se declara ferrenhamente contra a privatização de estatais estratégicas como Banco do Brasil, Caixa, Correios e Petrobras – símbolos da soberania nacional e da proteção social –, o banco de fomento estatal financia, com recursos públicos, a privatização do saneamento básico. É uma contradição gritante. Enquanto defende a manutenção de certos monopólios públicos como pilares do desenvolvimento nacional e da proteção dos mais vulneráveis, o mesmo Estado, via BNDES, fornece a corda para enforcar outro serviço essencial – o acesso à água limpa e ao esgotamento sanitário – na forca do lucro privado. Qual a lógica que justifica proteger o banco público e financiar a venda da água pública? É a confissão tácita de que o saneamento, historicamente negligenciado, não é tratado com a mesma importância estratégica?
O financiamento do BNDES a essas privatizações levanta questões profundas sobre os rumos do desenvolvimento. Será que o “fomento” está servindo verdadeiramente ao interesse público de universalização com qualidade e preço justo, ou está sendo instrumentalizado para viabilizar negócios lucrativos em um setor que, por sua natureza monopolista, oferece garantias atraentes ao capital? Os recursos dos brasileiros estão sendo usados para transferir um ativo vital – a infraestrutura de água e esgoto – para mãos privadas, sob um modelo que historicamente prioriza onde o retorno é mais rápido (áreas ricas e consolidadas), deixando as periferias e o interior na mesma (ou pior) situação de carência. O discurso da eficiência privada esbarra na dura realidade de que, sem fortes regulação e subsídios cruzados, o mercado não tem incentivo para servir aos que menos podem pagar.
A calmaria aparente em Sergipe e nas demais localidades privatizadas não deve ser lida como sucesso, mas como um interlúdio estratégico. É o momento em que as concessionárias consolidam seu controle, otimizam operações nas áreas rentáveis e preparam o terreno para futuros reajustes. O silêncio da mídia é parte dessa estratégia de consolidação. A verdadeira prova de fogo virá quando as primeiras tarifas significativamente mais altas chegarem, quando as obrigações de investimento em expansão e universalização (muitas vezes previstas em contrato, mas com prazos longos) se mostrarem insuficientes ou onerosas demais para o bolso do cidadão, ou quando velhos problemas ressurgirem em áreas menos visíveis. A pergunta não é se o custo aumentará, mas quando e quanto – e quem será realmente penalizado por isso.
O caso do saneamento é um microcosmo de uma disputa maior sobre o papel do Estado e o destino dos bens comuns. Defender estatais estratégicas em setores financeiros, de comunicação ou energia, enquanto se financia a privatização da água – a mais básica e vital das necessidades –, revela uma hierarquia de valores distorcida. Enquanto o BNDES, braço financeiro do Estado, injeta capital para transformar água em negócio privado, a população mais pobre sergipana e de tantos outros rincões do Brasil aguarda, em silêncio forçado, para ver se o “milagre” da privatização trará, finalmente, a água limpa e abundante que o poder público, em sua ineficiência e abandono histórico, nunca conseguiu garantir universalmente. E torce, com ceticismo, para que o preço desse suposto milagre não seja a própria dignidade.
O verdadeiro milagre que Sergipe e o Brasil precisam não é o silêncio cúmplice ou a eficiência seletiva do mercado, mas um compromisso firme, com recursos adequados e gestão competente – pública ou em modelos alternativos de forte controle social –, para garantir que cada gota de água, esse direito humano fundamental, chegue a todos, sem exceção, a um preço que não afogue o orçamento das famílias. Enquanto o BNDES financiar a entrega desse bem a lógicas puramente mercantis, sob um governo que condena outras privatizações, estará patrocinando não o desenvolvimento, mas uma profunda contradição e uma ameaça silenciosa à equidade social. O silêncio sobre a DESO hoje pode ser o prenúncio do grito de indignação amanhã, quando a conta – financeira e social – finalmente chegar.
Por Luis Moura – Ex-Supervisor Técnico do Dieese