O texto a seguir refere-se ao webinar promovido em uma parceria da FNU/CNU, ONDAS, ABES, AESBE e ASSEMAE, no último dia 13 abril e que pode ser assistido pelo link: 
https://www.youtube.com/watch?v=9EESRIU52Y0
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IMPRESSÕES SOBRE O WEBINAR “EFEITOS DO DECRETO FEDERAL Nº 11.030/2022”
Autora: Laiana Carla Ferreira [1]

No ano de 2020, o marco regulatório do saneamento previsto na Lei nº 11.445/2007  sofreu alterações em razão da promulgação da Lei nº 14.026. Dentre as mudanças legislativas promovidas por tal Lei, salientamos a previsão de apoio técnico e financeiro  da União para viabilizar a adequação dos demais entes federativos ao novo regramento, que deverão alcançar os novos objetivos e diretrizes previstos na Lei.

Nesse sentido, o novo artigo 10-B trouxe que os contratos em vigor disciplinando os serviços de saneamento básico, incluídos aditivos e renovações, estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada para viabilizar a universalização dos serviços (BRASIL, 2020)

Para estabelecer os critérios que comprovem a capacidade econômico-financeira da contratada, a Lei nº 14.026/2020 determinou a expedição de um Decreto regulamentar pelo Poder Executivo, no prazo de 90 dias.  Assim, após transcorridos 180 dias da promulgação da Lei nº 14.026, em 24 de dezembro de 2020, foi publicado o Decreto nº 10.588/2020, que disciplina “o apoio técnico e financeiro sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o artigo 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007” (ementa alterada posteriormente pelo Decreto nº 11.030/22).

O Decreto passou então a condicionar a alocação de recursos advindos da União ao cumprimento do prazo disposto no artigo 11- B da Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei nº 14.026/20. Tal artigo prevê que, para os contratos de prestação de serviços público de saneamento, devem ser estabelecidas metas de universalização que assegurem à população atendimento de 99% de abastecimento de água e 90% de coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033 (Lei nº 11.445/07, artigo 11-B). Os contratos em vigor que não possuem previsão de metas de universalização de abastecimento, coleta e tratamento, teriam até 31 de março de 2022 para viabilizar essa inclusão (Lei nº 11.445/07, artigo 11-B, §1º).

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, no que tange a adesão dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água e esgoto à regionalização dos serviços de saneamento; no mês de janeiro de 2022, dentre 22 dos estados habilitados, 15 comprovaram, dentro do prazo previsto de 31 de dezembro de 2021, a capacidade econômico-financeira para realizar investimentos no setor e alcançar as metas de universalização estipuladas [1].

Entretanto, em 1º de abril de 2022, após findo o prazo previsto na Lei, em seu  artigo 11-B, §1º (31 de março de 2022), para os contratos em vigor realizarem a inclusão de metas de universalização; foi editado o Decreto nº 11.030/2022, que modificou o Decreto nº 10.588/2020, alterando disposições sobre a regularização de operações e apoio técnico e financeiro e sobre a alocação de recursos públicos federais advindos da União.

Ante a alteração normativa, o ONDAS, mediado por sua coordenadora Renata Furigo, em conjunto com a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental- ABES, a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento- AESBE, a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento- ASSEMAE e a Federação Nacional dos Urbanitários-FNU, promoveu, em 13 de abril de 2022, o webinar “Em Defesa do Saneamento – Efeitos do Decreto Federal 11.030/2022”.

O debate iniciou-se salientando que não é a primeira vez que o governo tenta dar condições de competitividade ao setor de saneamento por meio de instrumentos de regulação, e que no entanto essas tentativas vêm resultando em violação das normas constitucionais e cada vez mais se afastam das metas de universalização..

Aclarou-se que o Decreto tem natureza de um ato regulamentar, que se configura como um ato que visa regulamentar uma Lei, ou seja, dar instruções para que uma Lei seja cumprida. Contudo, ao se observar o texto do Decreto nº 11.030/22, ele altera o Decreto anterior e se vale de alusões indiretas, fazendo diversas remissões a outros dispositivos legais, caracterizando-se como um ”texto labiríntico”, conforme qualificou o advogado Wladimir Ribeiro. Ele ainda destacou que um texto de Lei que parece nos confundir é comum em uma escalada do autoritarismo dentro da democracia, utilizando-se do poder regulamentar para maltratar princípios.

Dentre as diversas alterações da Lei nº 11.445/07, foi abordado especialmente o artigo 50, que cuida do acesso aos recursos federais. A principal questão foi a necessidade de haver uma estruturação de prestação regionalizada para ter acesso aos recursos federais.

Wladimir salientou que o artigo 50 original sempre cuidou das condições para acessar esses recursos, e a Lei n º 14.026/20 trouxe mais requisitos para que se possa acessá-los. Mencionou dois requisitos em especial: a regularidade da operação e a estruturação da prestação regionalizada. O artigo 2 do Decreto nº10.588/20 traz em seus incisos critérios para que seja considerada cumprida a exigência de prestação regionalizada. O Decreto condicionou ainda a alocação de recursos advindos da União ao estabelecimento de metas de universalização nos contratos dentro do prazo disposto no artigo 11- B, § 1,  da Lei nº 11.445/2007, qual seja, até 31 de março de  2022.

Na sequência, trouxe que findo o prazo estabelecido, alguns estados ainda não haviam cumprido os requisitos. Então, o novo Decreto adiou a necessidade dos requisitos para o ano seguinte, fixando a data de 31 de abril de 2023 somente para algumas situações. Caso o estado já tenha elaborado um projeto de Lei e este ainda esteja tramitando nas casas legislativas (somente Minas Gerais e Mato Grosso estão nessa situação), admite-se que ele tenha acesso aos recursos federais.

Salientou a relevância da continuidade dos investimentos já realizados para alcançar os resultados pretendidos pela Lei e, ainda, a essencialidade de liberação de recursos para alguns entes federativos que foram tolhidos pelos critérios do Decreto, sobretudo em ano eleitoral, em que as transferências devem ocorrer até 1º de julho. Entretanto, colocou que a Lei em vigor deveria ser cumprida e os textos normativos vêm sendo editados de maneira enviesada.

Outro problema trazido é que os municípios que têm contrato com a Companhia Estadual e não inseriram metas de universalização dentro do prazo, ou não apresentaram a avaliação da capacidade econômico-financeira do prestador de serviços públicos, tiveram seus contratos classificados como “irregulares”.

Wladimir relembrou que todos os contratos são protegidos pela Constituição, sendo gênero do ato jurídico perfeito. A Constituição traz que este não pode ser prejudicado por Lei posterior, ou seja, quando celebrados são regidos pela Lei que estava vigente na data, e ela rege a relação jurídica até o seu final. A Lei pode ser revogada ou modificada, mas continua vigorando no âmbito das relações contratuais, configurando na proteção do ato jurídico.

Esclareceu ainda que a Lei diz que os contratos são válidos, mas seria desejável pela política pública que tivessem metas e novas características criadas hoje pela Lei nova. Caso não se cumpram as novas exigências, continua existindo o contrato, pois é protegido constitucionalmente.

Salientou que, nesse cenário, deve ser conciliado o ato jurídico perfeito com a necessidade de inovações. A União quer patrocinar uma mudança, convencendo as partes a mudarem os contratos antigos, incluindo nesse instrumento metas de universalização. Isso não pode ser feito de modo compulsório, uma vez que a Lei não pode prejudicar o ato jurídico perfeito. Assim foi criada uma série de incentivos para que sejam realizadas alterações, como, por exemplo, o acesso a recursos federais.

No Decreto nº 11.030/22, sob o argumento de disciplinar o acesso a tais recursos, condiciona-se a assunção de alguns compromissos, entre eles a substituição dos contratos de programa vigentes por contratos de concessão (artigo 3, §10, III). Isto gera uma obrigação do município titular em rescindir antecipadamente os contratos que não tivessem essas metas, que não obedecem a Lei nova. Todavia, o contrato que não obedece a Lei nova é um ato jurídico perfeito.

O contrato de concessão possui a característica de que o poder público, gozando de uma prerrogativa, pode rescindi-lo por razões políticas, configurando a encampação. Contudo, devem-se indenizar os investimentos que não foram amortizados e também os lucros cessantes, que são os direitos de exploração do contrato até o final do prazo. É uma prerrogativa natural do poder público, e deve ser usada com muita ponderação pois pode gerar custos elevados, conforme esclareceu o advogado.

O Decreto nº 11.030/22 recomenda e estimula os municípios a encamparem esses serviços, que foram designados como irregulares. Esse estímulo é problemático pois pode gerar nova despesa pública. Ademais, o procedimento de encampação não é fácil e perpassa por várias etapas, como alertou Wladimir.

O expositor afirmou que tal estímulo é prejudicial para o setor de saneamento, pois incita conflito entre os municípios e as companhias estaduais. O Decreto exorbita quando recomenda a substituição de contratos e ainda se utiliza equivocadamente do termo ”irregular”, dando a entender que os contratos não estariam de acordo com a Lei. Assim, o Decreto nº 11.030/22 de maneira enviesada acaba por estimular que os municípios imediatamente substituam e façam extinção antecipada dos contratos.

Sob o aspecto positivo, Wladimir conclui que, mesmo que inconstitucionalmente, o Decreto acaba por estimular algum grau de investimento no setor. Por outro lado, percebe-se a desmoralização do marco regulatório, que não goza de segurança jurídica e vem constantemente sendo alterado, postergando alguns dispositivos quando não são integralmente cumpridos.

Finda a exposição, deu-se início às impressões dos debatedores, começando por Alceu Bittencourt, presidente da ABES. Iniciou trazendo que o Decreto acompanha a lógica de todo o processo de alterações no setor de saneamento que, desde a promulgação das medidas provisórias pareceu prejudicado. As soluções deveriam ter sido mais negociadas e menos impostas. O forte interesse em reestruturar o setor traz risco de desorganização, uma prioridade de promover leilões com modelagens geralmente superficiais e voltados para a outorga, que são os grandes estímulos.

A ABES ressaltou que as outorgas têm sido concentradas no início dos fluxos, o que difere dos padrões internacionais, e que deveriam ser distribuídas ao longo do investimento. Considerando o setor de saneamento como deficitário, os investimentos deveriam vir vinculados a uma estruturação do próprio setor, que não foi o que ocorreu.

Trouxe a necessidade de se encontrarem formas de intervir, não sendo simples, pois a lógica conduz a disputa judicial muito complexa. Em alguns casos o judiciário tem sido influenciado por uma visão às vezes simplista e isso pode estar levando a certas decisões fora do esperado pelos constitucionalistas, ou situações de conflitos e impasses, acrescentou. A ABES busca processos mais negociados, mas tem se constatado o contrário. Há uma série de contradições que levam à desorganização. É um processo observado com muita preocupação, que necessita de muito diálogo e que deve envolver todos os segmentos do setor.

Roberto Linhares, representando a AESBE, salientou que, desde o primeiro momento, a Lei nº 14.026 /20, suas alterações posteriores e as regulamentações vieram para excluir determinados prestadores de serviço e facilitar a  absorção do serviço por outros. Colocou ainda que, para que haja a universalização, os instrumentos legislativos devem contar com a participação de todos os atores, o que não vem acontecendo.

O representante da ASSEMAE, Francisco Lopes, colocou que, em que pese a inconstitucionalidade do Decreto novo, deve-se viabilizar os investimentos. Não deveria ter sido fixado um prazo para coagir o setor a instituir a regionalização. Nessa direção, aponta que o Decreto não atende aos serviços municipais, salvo nos casos de Minas Gerais e Mato Grosso. Os municípios vão receber recursos, mas o Decreto novamente direciona para prazos seletivos e que não condizem com a universalização. Ademais, incentiva os municípios a romper contratos com as companhias estaduais, mudando para um novo modelo de concessão.

Lembrou ainda que os consórcios públicos para a prestação dos serviços de água e esgoto estão vedados, mas cabem para os serviços de drenagem e resíduos sólidos. Afirma que vêm se apostando em modelos aleatórios, quando deveriam selecionar os mais adequados para se alcançar a universalização. A regionalização não deve ser imposta somente para se ter acesso aos recursos federais, sobretudo quando não estão claros os modelos de regionalização. Cada vez mais vem se  criando dificuldades para os prestadores públicos, especialmente municipais, para tentar apresentar aos municípios que só há uma alternativa. Concluiu que, na prática, não parece que seja o caminho que de fato nos levará a universalização, apesar de se utilizar de alguns critérios para melhorar os índices.

Luiz Alberto Rocha, assessor jurídico da FNU, contribui com o debate trazendo a questão mais enfática: há uma premissa equivocada do marco que alterou a Lei nº 11.445/07  mas não instituiu mecanismos para uma atuação integrada no setor de saneamento. Afirmou que não se pode atribuir o déficit no saneamento às companhias estaduais, por ineficácia e falta de gestão, trazendo que o maior problema seria, na verdade, a diminuição de investimentos orçamentários em um setor que é essencial para manter o mínimo de dignidade  da pessoa humana, para se referir ao marco da Constituição Federal de 1988.

Lembrou que a FNU defendeu no Supremo Tribunal Federal que há uma força muito grande de coação, e não uma indução de política pública, para que os municípios adotem o padrão determinado por uma Lei. A União se valeu do seu “spending power” (conceito da doutrina americana[2]). Há, tanto no Decreto original, quanto no novo, um reforço no processo de determinar um garroteamento das titularidades do saneamento para que os municípios sejam forçados a um processo de regionalização e joguem fora os contratos, atos jurídicos perfeitos, em vigor, para que sejam rescindidos de qualquer maneira.

Suscitou inclusive discussões legais advindas da encampação e subsequentes indenizações, que, tratadas em processos administrativos ou judiciais, prejudicarão o cumprimento do prazo de universalização em 2033, em razão do alongamento do litígio.

Concluiu que se as alterações no marco regulatório pretendem buscar a iniciativa privada para recursos, uma das lições mais claras do mercado liberal é que a iniciativa privada investe onde detém segurança jurídica e o governo vem demonstrando ao mercado o contrário. A falta de regulamentação e a forma como vem se dando o processo atual atinge o próprio mecanismo buscado pelo estado, que é atrair o setor privado.

Finalizando o debate, Marcos Helano Montenegro, Coordenador-Geral do ONDAS, reafirmou o estímulo ao conflito, colocando em risco o alcance de metas na medida em que se demonstra insegurança muito grande. Trouxe também a incapacidade da ANA de, a curtíssimo prazo, produzir normas de referência com qualidade suficiente. Ressaltou também a urgência em se introduzir na legislação brasileira uma vedação do critério de maior valor de outorga para determinar o vencedor de uma licitação para a prestação do serviço de água e esgoto, uma vez que o valor da outorga será ressarcido via tarifa.

Pontuou ainda que vários editais de licitação não incluem áreas rurais e nem as populações pobres em áreas irregulares, que não podem ser desprezadas pelas  metas de universalização.  Por fim, apontou a necessidade de se incorporar, de maneira mais clara e responsável, as agências reguladoras nos processos que visam leilões para concessão dos serviços públicos de saneamento básico. Elas devem se manifestar a priori sobre as minutas de editais e contratos, devendo anexar seus pareceres específicos quando da consulta pública.

Nas considerações finais todos salientaram a necessidade de reafirmação do estado democrático de direito e de criação de uma pauta conjunta para o setor de saneamento, independente da defesa de cada entidade, focada no prisma da universalização.

REFERÊNCIAS
BRASIL. 2007. Lei nº 11.445. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11445compilado.htm>

______.2020. Lei nº 14.026. Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L14026.htm#art7>

_______.2020. Decreto nº10.588. Dispõe sobre o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Decreto/D10588.htm>

_______. 2022 Decreto nº11.030.Altera o Decreto nº 10.588, de 24 de dezembro de 2020, para dispor sobre a regularização de operações e o apoio técnico e financeiro de que trata o art. 13 da Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, e sobre a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou geridos ou operados por órgãos ou entidades da União de que trata o art. 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/////_Ato2019-2022/2022/Decreto/D11030.htm>

[1]Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/transito-e-transportes/2022/01/adesao-dos-estados-a-regionalizacao-dos-servicos-de-saneamento-basico-supera-expectativa-do-governo-federal>

[2] A competência da União para criar determinada política pública e condicionar o repasse de verba aos Estados para o cumprimento dessa política, mesmo no âmbito das competências estaduais.

[1] Laiana Carla Ferreira – Advogada, Pós Graduada em Direito Público, Mestranda no PROURB/UFRJ.

Artigo publicado originalmente no site do ONDAS.