Tramita no Congresso Nacional a Medida Provisória (MPV) 868/2018 de 27 de dezembro de 2018.
Seu objetivo é modificar, entre outras, a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, que criou a Agência
Nacional de Águas e a Lei nº 11.445 de 5 de janeiro de 2007, que definiu as diretrizes nacionais para
o saneamento básico.
O Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), que tem como um dos
seus objetivos: “congregar e integrar, em âmbito nacional, entidades e pessoas físicas interessadas
em contribuir para a defesa e promoção dos direitos humanos à água e ao saneamento e para a
defesa da universalização dos serviços públicos de saneamento básico de qualidade e acessíveis,
prestados por entidades públicas”, não poderia deixar de se manifestar sobre o tema.
Reconhecemos os importantes avanços conquistados pelo setor de saneamento no Brasil, como a
retomada dos financiamentos pelo governo federal a partir do ano de 2003 e sua intensificação com
o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007; a instituição da Lei nº 11.445, de
07/01/2007 e de seu decreto regulamentador; da Lei nº 11.107, de 06/04/2005 (dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos); a reintrodução do planejamento como instrumento de política pública; a criação do Ministério das Cidades; do Conselho Nacional das Cidades; a realização das Conferências Nacional das Cidades e a elaboração do Plano Nacional de Saneamento (Plansab).
Os indicadores de saneamento básico melhoraram em todas as regiões do país a partir de 2003,
destacando-se o abastecimento de água no Nordeste que passou de 69,4 para 88% em 2015 e o acesso a esgotamento sanitário adequado no Sul de 25,7 para 65,9% em 2017.
Por outro lado, entendemos que esses avanços institucionais e de financiamento que repercutiram em expressiva melhoria de indicadores de atendimento não foram suficientes para que o País alcançasse elevados índices de atendimento em abastecimento de água e mais notadamente no esgotamento sanitário em todas as regiões. Vários motivos podem justificar esse avanço abaixo do esperado, porém destacamos alguns: o corte de recursos da ordem de 40% a partir de 2015; a dificuldade de execução dos recursos contratados para as obras e ações de saneamento; o tempo de maturação de obras comas particularidades do saneamento; a dominância de um modelo tecnológico tradicional pouco adequado às áreas de assentamentos precários (como ocupações de favelas e morros), à zona rural e aos pequenos municípios; a falta de integração da política de saneamento com outras políticas públicas, sobretudo as de habitação e desenvolvimento urbano; as dificuldades de planejamento e gestão integrada de todos os componentes do saneamento básico; o fato do saneamento ainda não ocupar espaço de destaque na agenda das políticas públicas de grande parte dos governantes etc. Ou seja, os desafios ainda são grandes.

Ocorre que, o relatório apresentado pelo Senador Tasso Jereissati, relator da MPV 868 na comissão
mista que analisa a propositura, que pretende ser a alternativa para a superação dos desafios do
saneamento, não enfrenta os principais problemas. Aliás, submete o setor a uma aventura que
promoverá a maior insegurança jurídica que o saneamento já viveu e abre a perspectiva de aumentar
a exclusão da população mais pobre ao acesso aos serviços de saneamento básico.

Vejamos alguns pontos que justificam nossa afirmação. A proposta ataca a gestão associada de
serviços públicos, importante instrumento que possibilita a cooperação entre entes federados através
de Consórcios Públicos ou Convênio de Cooperação e está consagrada no Art. 241 da Constituição
Federal (CF). Em 2005 foi aprovada a Lei dos Consórcios Públicos (11.107/2005) que regulamentou
o Art. 241 da CF e definiu as regras para serem aplicadas a todos os serviços públicos prestados por
gestão associada. A Lei dos Consórcios Públicos cria o Contrato de Programa para regular obrigações
relacionadas à prestação de serviços públicos entre dois entes da Federação, sempre no âmbito da
gestão associada de serviços públicos (Art. 13), permitindo um avanço na gestão associada e na
cooperação entre entes federativos. Vale destacar aqui que a lei prevê que o Contrato de Programa,
cujo fundamento é a cooperação entre entes públicos, será automaticamente extinto no caso de
alienação (privatização) da empresa estadual (Art. 13, § 6°). Esse, aliás, um dos motivos que justifica
a edição da MPV 868, mesmo que não explicitado.

O Art. 7º da MPV que altera o Art. 13 da Lei nº 11.107/2005 representa um duro golpe na forma como o setor se estrutura hoje, proibindo a utilização do Contrato de Programa para a prestação dos serviços, no âmbito da Gestão Associada. Ou seja, com isso, o serviço que não seja prestado diretamente pelotitular, deverá ser objeto de licitação para a concessão dos serviços, sob a égide da Lei nº 8.987, de 1995. O artigo Revoga o § 6° do Art. 13 da Lei nº 11.107 que não permitia a continuidade dos contratos de programa na hipótese de alienação do controle acionário da empresa estadual prestadora dos serviços (Art.15, III), e ainda revoga o Inciso XXVI, inserido no Art. 24 da Lei nº 8.666/1993,pela Lei nº 11.107/2005, que por se tratar de uma relação entre entes federativos, dispensava a licitação para os Contratos de Programa (Art. 15,I).

O ONDAS entende que a União quer retirar do titular dos serviços de saneamento, o Município, a
prerrogativa de definir qual a forma de prestação de serviços, interferindo na autonomia dos
Municípios e do Distrito Federal (DF), o que denota uma inconstitucionalidade. Destaque-se que a
alteração desses dispositivos legais tem por objetivo ampliar a possiblidade de participação do setor
privado nas ações de saneamento. Ocorre que, o setor privado já dispõe de dois instrumentos legais
para participar da prestação dos serviços de saneamento básico ou de qualquer outro serviço público,garantido na Lei nº 8.987, de 1995 (Lei de Concessões) e na Lei nº 11.079, de 2004 (Lei das Parcerias Público-Privada – PPP).

Uma das novidades contidas no relatório do Senador Jereissati também contraria um dispositivo
constitucional ao determinar que os Estados instituam uma nova forma de regionalização, os “blocos de municípios”, condição que não guarda amparo na CF, já que as formas de regionalização previstas na Constituição é a Coordenação Federativa, de forma compulsória, instituídas por meio de Lei Complementar Estadual, e constituídas por municípios limítrofes. São as Regiões Metropolitanas (RM), Aglomerações Urbanas (AU) e Microrregiões (MR), de acordo com o § 3º do Art. 25 da CF. A outra forma de regionalização é a Cooperação Federativa, de forma voluntária, por meio da instituição de Consórcios Públicos ou Convênios de Cooperação, constituídos por municípios,contíguos, ou não, para autorizar a gestão associada de serviços públicos entre os entes federados,conforme o Art. 241 da CF.

A União não pode obrigar os Estados a instituírem blocos de municípios, tampouco, os Estados
poderão obrigar aos municípios se associarem, há não ser de forma compulsória, por meio de RM, AU ou MR, arranjos intermunicipais caracterizados pela continuidade territorial, o que não é o caso
dos tais blocos. Novamente aqui há um grave descumprimento da CF.

O Governo Federal pretende forçar os municípios a aderirem à nova estrutura do setor, para isso
condiciona a disponibilização de recursos financeiros à submissão ao novo arranjo legal. Ainda mais
questionável é fazê-lo quando a MPV 868 traz em seu conteúdo flagrantes inconstitucionalidades.

Nos termos colocados pela MP, a privatização avança sobre a autonomia do poder público exercer a
titularidade dos serviços de saneamento, comprometendo o próprio sentido de serviço público do
setor e seu controle e reforça uma visão de saneamento básico como mercadoria. Se, atualmente, a
lógica de tratar os serviços de água e esgoto como mercadoria já está presente garantindo, inclusive,
ganhos para acionistas internacionais de empresas prestadoras de serviços sem que avanços sociais e ambientais se generalizem, esse quadro pode se agravar com a MP.

O ONDAS acredita que para alcançar a tão necessária universalização do acesso aos serviços é
preciso defender o direito ao saneamento e ao meio ambiente equilibrado e contestar projetos de
privatização dos serviços públicos de saneamento básico nas suas diversas modalidades. É preciso
defender as instituições responsáveis pela política pública de saneamento básico, garantindo-se a
capacidade institucional, os investimentos, o controle social e o fortalecimento dos processos de
elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico, com participação social e democrática. O
aperfeiçoamento do marco legal que orienta, é sempre possível, mas tendo como princípios o acesso
à água e ao esgotamento sanitários como direitos humanos e o fortalecimento da gestão pública.

Nesse sentido é fundamental democratizar a política pública de saneamento básico, estimulando a
participação da sociedade civil organizada nos processos de decisão, no monitoramento e na avaliação da gestão dos serviços. O ONDAS reivindica essa democratização se associando aos movimentos sociais que defendem os direitos à água e ao saneamento e denunciam suas violações e buscam promover a articulação e integração das políticas públicas na perspectiva de se conquistar a reforma urbana, a reforma sanitária, a reforma agrária, a defesa do meio ambiente e das águas, com vistas a fortalecer a construção de um projeto de nação democrática, soberana, igualitária e justa do ponto de vista socioambiental.

Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS)
Maio de 2019

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