A proposta de Temer é ‘como se o governo estivesse tirando dos pobres para dar aos ricos, um Robin Hood às avessas dos nossos tempos’. É hora de defender o saneamento, a saúde e a qualidade de vida de todos os brasileiros e brasileiras.

Artigo de Roberval Tavares de Souza*

O sonho da universalização do saneamento no Brasil poderá ficar cada vez mais distante. Isso porque a proposta de revisão do Marco Legal do Saneamento do Governo Federal, que pode ser editada por meio de medida provisória, pode desestruturar totalmente o setor no país. E novamente os mais prejudicados serão os brasileiros mais pobres, que vivem sem acesso a água potável e esgoto tratado e sujeitos a contrair todo tipo de doenças.

Além do governo querer utilizar medida provisória para a revisão, em detrimento do projeto de lei, o que significa fazer uso de instrumento pouco democrático, a mesma impactará diretamente no subsídio cruzado (que possibilita que municípios com menos recursos tenham acesso aos serviços).

A utilização de medida provisória só cabe em dois critérios fundamentais, que são relevância e urgência. Apesar de assunto relevante, o mesmo não é caracterizado pelo fundamento da urgência, mesmo porque os atores envolvidos não tiveram prazo para elaborar o texto da medida proposta. As mudanças são relevantes e estruturais, portanto, devem acontecer após intenso debate com todo o setor de saneamento e com o Congresso Nacional.

O Artigo 10-A, proposto no texto do governo, que trata sobre o chamamento público antes do contrato programa, altera a Lei 11.445 de 05 de janeiro de 2007. Esse artigo aumenta ainda mais a seleção contrária ao interesse público: ao abrir consulta pública, induz as operadoras públicas e privadas a competir apenas pelos municípios superavitários, deixando os municípios mais pobres ao próprio encargo e dos estados. Dessa maneira, dificulta a prestação do serviço de forma regionalizada e, ao inviabilizar a prática de subsídios cruzados, agrava as diferenças na qualidade e na cobertura dos serviços, com prejuízo para a população mais carente.

Os resultados serão catastróficos, pois este artigo busca benefícios locais em detrimento da política pública já considerada na Lei 11.445/07. Para os municípios superavitários, após o chamamento público, haverá invariavelmente interessados e, desta forma, haverá licitação pública. Como há concorrência, o resultado é a otimização do contrato programa local. Todo o superávit que seria gerado na hipótese de contrato de programa tende a ser consumido pelo processo concorrencial da licitação, e desta maneira não subsidiarão os municípios deficitários.  Com a aplicação desse processo nos municípios que atualmente são doadores, extingue-se todo o subsídios entre os municípios.

Para os municípios deficitários, por sua vez, não haverá interessados dos agentes, podendo inclusive não haver nem mesmo interesse por contrato programa. O município fica nas mãos do poder público. A fonte de financiamento, nesse caso, deverá ser fiscal. Dos mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas cerca de 500 apresentam condições de superávit nas operações de saneamento. Como ficarão os 5 mil municípios que dependem dos subsídios cruzados?  Vamos a um exemplo real: no final da década de 90 o governo do Estado do Amazonas e do município de Manaus, aprovaram que o saneamento de Manaus sairia do controle da empresa estadual de saneamento, o município de Manaus era o único município superavitário do Estado, e o que aconteceu com o saneamento neste Estado?

Passados 20 anos, os dados do SNIS 2015 (Sistema Nacional de Informações de Saneamento) apontam que a cobertura de abastecimento de água no Estado do Amazonas é de 76 %, sendo que Manaus tem 85 % de cobertura. Quando calculamos o resto de Estado sem Manaus o índice cai para 56%. E apenas a metade dos municípios de Estado declararam que têm abastecimento de água, o que pode fazer este número ser ainda pior. Vamos só ficar com os dados de abastecimento, pois os dados de coleta e tratamento de esgotos são próximos a zero. O saneamento no Estado do Amazonas não melhorou nos últimos 20 anos, a cidade de Manaus avançou no abastecimento de água e os demais municípios amazonenses, que já tinham indicadores ruins de saneamento na época desta mudança, hoje estão ainda piores, ou seja, os pobres ficaram miseráveis.

Segundo o SNIS 2015, o Estado do Amazonas tem 62 municípios, dos quais 31 deles informaram dados ao Ministério das Cidades. Verificamos que os 30 municípios, além de Manaus, têm péssimos indicadores de saneamento e saúde e destes, 14 municípios têm indicador de atendimento de água menor que 50%. De acordo com a FUNASA (Fundação Nacional da Saúde), temos 18 municípios do estado do Amazonas distribuindo água bruta, retirada diretamente dos rios, sem nenhum tratamento para a população. Com este exemplo podemos afirmar que a manutenção deste artigo no texto do governo vai piorar a situação do saneamento ambiental do Brasil.

Não bastando o problema apontado acima, quebra da lógica do subsídio cruzado, observamos que é direito da administração optar pela prestação direta dos serviços de saneamento básico e este artigo pode impedir que uma administração coopere com a outra, levando a ganhos sistêmicos para a sociedade.

Esta proposta é como se o governo estivesse tirando dos pobres para dar aos ricos, um Robin Hood às avessas dos nossos tempos, digamos, em um momento que recursos para a saúde estão congelados por 20 anos. Ou seja: não investiremos em saneamento para prevenir doenças nem teremos condições de tratar os doentes. Em pleno século 21, viveremos em um Brasil do século 19.

O momento é crucial. E necessário urgentemente viabilizar o debate amplo em nossa sociedade, para que este não fique concentrado apenas nos temas aqui destacados, mas impactando na discussão dos demais itens das alterações propostas pelo governo.

A Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental – ABES, juntamente com outras entidades do setor, como a FNU, tem atuado junto ao governo federal, estados e poder legislativo para ressaltar quão danosa é esta medida. O setor de saneamento e a população brasileira devem insistir em propostas e ações que melhorem os serviços no Brasil, sempre defendendo o debate plural e a participação ampla da sociedade. É hora de defender o saneamento, a saúde e a qualidade de vida de todos os brasileiros e brasileiras.

*Roberval Tavares de Souza é presidente da ABES