artigo: Cid Curi*

O único caminho viável para o saneamento básico é o fortalecimento de uma empresa única que tenha o comando, a operação e o controle de todas as ações relativas ao saneamento básico no Estado.

Quanto mais fragmentado, por tipo de serviço ou por área, forem as atividades pertinentes ao saneamento básico, menos “poder” terá a organização que presta este serviço, no caso do Estado do Rio de Janeiro, a CEDAE. O requisito indispensável para que a CEDAE reúna as condições necessárias para fazer uma harmonização social da prestação dos serviços, é a concentração em uma só caixa, do faturamento das áreas lucrativas da capital, Rio de Janeiro, de modo a ter “poder” de caixa para prestar os serviços nas áreas deficitárias e de população de baixa renda, via mecanismo de subsídio cruzado. Isto é o que a CEDAE tem feito há décadas sem que o Estado tivesse que desembolsar um centavo de seu orçamento.

Oitenta e Seis por cento, em média, do faturamento da CEDAE, provém da cidade do Rio de Janeiro. A quase totalidade das outras áreas onde a CEDAE atua é deficitária. Não há, portanto, possibilidade de se fragmentar em alguns blocos de distribuição de água, as áreas mais lucrativas da capital para permitir a privatização da distribuição de água, em favor de várias empresas particulares que passariam, então, a ser detentoras do faturamento e, consequentemente, do lucro. Este lucro deixaria, como tal, de ser lucro público que é usado para custeio da prestação dos serviços em áreas deficitárias e de população de baixa renda. Além disso, o lucro dessas áreas privatizadas, então, deixaria de ser utilizado, conforme ocorre atualmente no modelo vigente, como lastro para viabilização dos equacionamentos financeiros realizados no âmbito da CEDAE, para investimentos de grande porte, como por exemplo, as atuais obras para universalização dos serviços de saneamento básico nos municípios da Baixada Fluminense para atender a 2 milhões e duzentas mil pessoas, a nova estação de tratamento de água, Guandu Novo, para atender a este aumento de demanda, etc.

Estas considerações mostram a diferença entre lucro público, que voltam para a população sob forma de serviços em área deficitária, sem retorno, e lucro privado que, invariavelmente, vai para o bolso de um particular concentrador de renda, tanto no caso de privatizar a distribuição de toda a área da cidade para uma empresa, como no caso de dividir a área em alguns territórios para vender a distribuição para diferentes empresas privadas.

Acresce, ainda, o fato de que o estabelecimento de territórios privados, na distribuição da área lucrativa, obriga a CEDAE a devolver, aos municípios, a prestação dos serviços, uma vez que não teria em suas mãos o lucro proveniente do faturamento da cidade do Rio, para cobrir os custos nos municípios deficitários, isto é, a CEDAE perderia as condições que hoje detém para realizar a harmonização social da prestação dos serviços através do subsídio cruzado.

Então, o modelo resultante seria aquele em que os municípios da Região Metropolitana e do Interior assumiriam a prestação dos serviços, sem condições técnicas e operacionais para tal. Ou seja, a privatização da distribuição das áreas lucrativas da capital desembocaria no padrão existente, antes, até meados da década de 70, que não propiciava a queda da mortalidade infantil, cujo índice resistia em patamares muito elevados.

O modelo atual (subsídio cruzado), em que uma instituição de porte maior concentra condições técnicas, operacionais e financeiras, otimizando os recursos, permitindo o desenvolvimento tecnológico e institucional, e, arregimentando, desta forma, meios para prestar e ampliar os serviços, evidentemente, obedecendo a uma escala de prioridades, em todas as áreas, inclusive aquelas deficitárias.

Assim, este modelo, em que, uma organização lucrativa, administrada como empresa privada, porém sob controle do Estado, no caso, a CEDAE, que centraliza todo o faturamento, todas as condições de avanço tecnológico, mantendo sempre o padrão de potabilidade da água, recomendado pela Organização Mundial da Saúde – OMS, e, que se obriga a atender a todas as áreas, lucrativas ou deficitárias, de renda alta ou baixa, constitui um instrumento nas mãos do Estado para combate imediato de epidemias localizadas de doenças de veiculação hídrica, como tem acontecido há décadas. Isto somado a meios para realizar milhares de pequenas obras de expansão dos serviços, bem como condições financeiras para equacionamento de fundos para realizar grandes investimentos, fez com que a curva da mortalidade infantil ficasse sempre acentuadamente descendente. Mesmo quando a mortalidade infantil ainda crescia na média do país, na década de 80, no Rio de Janeiro, já caía mais de vinte por cento, fato justificado pela política de saneamento básico do governo, implementada pela CEDAE. A mortalidade infantil ainda depende de muitos investimentos da CEDAE em áreas deficitárias, de baixa renda, para continuar diminuindo até chegar aos padrões preconizados pela OMS.

Pode-se dizer que este modelo atual que concentra meios de toda ordem em uma única instituição, otimizando todos os tipos de recursos e permitindo o subsídio cruzado, constitui o padrão que viabiliza investimentos, pequenas obras, operação e manutenção de alto nível, em todas as áreas do Estado sem distinção de condição socioeconômica.

Atualmente, no caso da CEDAE, é muito importante levar em conta um fato que se opõe de forma definitiva a qualquer consideração em direção à privatização da distribuição nas áreas lucrativas, pois, neste caso, a CEDAE perderia a imunidade tributária concedida, recentemente, pelo STF. O valor que a CEDAE, daqui em diante, deixa de pagar de imposto é meio bilhão por ano, que será aplicado em aumento da cobertura de saneamento básico em áreas de baixa renda. Além disso, a CEDAE ainda vai receber 3,5 bilhões de volta, relativos a anos anteriores. A CEDAE, isto é, o Estado do Rio de Janeiro não tem como perder esta quantia anual para expandir os serviços em áreas carentes, permitindo que outras melhorias possam ser realizadas nestas regiões.

subsídio cruzado é o motor da harmonização social da prestação dos serviços e a harmonização social da prestação dos serviços é a ferramenta fundamental que faz cair a mortalidade infantil. Logo, o Estado do Rio de Janeiro não pode, em hipótese alguma, abrir mão do subsídio cruzado, no âmbito da CEDAE. A privatização da distribuição impede a utilização do mecanismo do subsídio cruzado. Por conseguinte, não há como privatizar a distribuição da cidade do Rio de Janeiro – e, nem há necessidade, pois, a CEDAE ganhou, recentemente, o premio de “Melhor Empresa de Infraestrutura do Brasil”.

*Cid Curi – Engenheiro e ex-presidente da Cedae

Artigo publicado originalmente APS

ÁGUA, ENERGIA E SANEAMENTO NÃO SÃO MERCADORIAS!