A afirmação de que o valor da conta de luz elétrica diminuiria com a privatização da energia é “a maior mentira do mundo”, conforme o professor Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, especialista em energia e ex-Diretor Executivo da Petrobrás. Para ele, o Brasil tem potencial para ter um sistema de distribuição de energia muito mais eficiente e com menos custos, diferente do que acontece atualmente.

O presidente Michel Temer (MDB) anunciou no ano passado que privatizaria a Eletrobras, plano que já começou a por em prática. A Companhia de Eletricidade do Acre (Eletroacre), as Centrais Elétricas de Rondônia (Ceron) e a Boa Vista Energia, que atende Roraima, foram arrematadas em leilão. Em julho, foi vendida a Companhia de Energia do Piauí (Cepisa). No último dia 5 de setembro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto de lei (PLC 77/18) que viabiliza a privatização de mais seis distribuidoras de energia. O texto deve ser votado pelo Plenário após as eleições, por um acordo de lideranças.

Em palestra no evento Painéis da Engenharia, promovido pelo Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (Senge-RS), Sauer destacou que nenhum país do mundo que utilize hidrelétricas como uma das principais fontes de energia as privatizou. Em nota divulgada no início deste ano, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) citou o exemplo da China, que responde por 27% de toda a capacidade instalada mundial, onde predominam as empresas estatais hidroelétricas. O mesmo ocorre com o segundo país em capacidade instalada, os Estados Unidos, onde 73% das hidrelétricas pertencem a órgãos ou empresas públicas. No Canadá e Noruega, onde predomina a fonte hidrelétrica, a participação do setor público chega a alcançar 90%; e, na Índia, atinge 93%.

Em entrevista ao portal Sul21 após a palestra no Senge, o professor lembrou ainda que o Brasil já passou pela experiência das privatizações durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) nos anos 1990, resultando em uma inflação muito elevada e aumento da tarifa. “É um conflito regulatório de interesses, em que as empresas privadas usam todos os recursos possíveis junto ao reguladores para obter o máximo de lucro possível, esse é o objetivo. Eles não fazem caridade e nem podem fazer, porque no capitalismo empresa busca o maior lucro possível”, avalia.

Confira a entrevista completa:

Sul21 — Como se daria, na prática, a privatização da energia?

Ildo Sauer — O Brasil já passou por isso. Nós começamos privados, estatizamos porque as empresas não investiam o suficiente e, depois, nos anos 1990, em 1995, voltamos a privatizar. E daí novamente não houve expansão de investimentos, tivemos um racionamento em 2001 com vários apagões. A promessa, naquele tempo, foi de que se iria usar o dinheiro da venda das empresas para diminuir a dívida pública, mas ela aumentou de R$ 80 bilhões para R$ 800 bilhões no fim do governo do FHC e agora está praticamente em R$ 4 trilhões. A tarifa desde então aumentou 127% acima da inflação, e tivemos periodicamente desligamentos locais, alguns blackouts nacionais e o racionamento de 2001.

É um conflito regulatório de interesses, as empresas privadas usam todos os recursos possíveis junto ao reguladores para obter o máximo de lucro possível, esse é o objetivo. Eles não fazem caridade e nem podem fazer, porque no capitalismo, as empresas buscam o maior lucro possível. Então, quanto mais frágil é a regulação do sistema, mais exposta fica a população ao poder econômico. Quando as empresas são públicas, em geral, elas têm que responder à população, tem certo controle. É verdade que nem todas as estatais fizeram isso, há problema de corrupção, de ineficiência. Eu tenho dito que é preciso arrumar o sistema, e é possível.

Sul21 — Há como fazer um comparativo com outros lugares do mundo?

Ildo Sauer — Há muitos exemplos no mundo inteiro onde empresas públicas prestam um serviço de qualidade, eficiente, e a tarifa é a menor possível frente aos custos. A privada poderia fazer também, desde que se tenha um sistema de regulação e controle que não existe no Brasil. Porque a agência de energia elétrica está em Brasília, então a empresa impõe o que quer, não ouve as reclamações das pessoas. A Inglaterra foi a primeira a começar a privatizar, no final dos anos 1970, e está estudando voltar a estatizar agora, acha que a privatização não correspondeu às expectativas, estão revisando.

Sul21 — O senhor mencionou na palestra que até mesmo nos Estados Unidos as hidrelétricas são públicas.

Ildo Sauer — Os Estados Unidos, a meca do capitalismo mundial, mantém suas grandes hidrelétricas sob controle público. Porque lá, assim como aqui, os rios são muito importantes para a vida, são fonte de água para abastecimento público, navegação, irrigação, recreação, geração de energia. Toda vez que se entrega um pedaço do rio, [entregando a] geração de energia elétrica para um grupo poderoso economicamente, as outras facetas, que são de interesse público, tornam-se menores, e a solução acaba favorecendo aqueles que têm mais poder econômico, que é a empresa que controla a usina. Não há solução fácil para isso, mas em uma sociedade democrática em que prevaleça o interesse público, é fundamental que todos os recursos naturais únicos, que não são reprodutivos, não são mercadorias, permaneçam sob o interesse público, como são os rios e as usinas.

Sul21 — Como responder ao argumento de que a privatização diminuiria os valores da conta de luz?

Ildo Sauer — Essa é a maior mentira do mundo. No governo FHC, como eu disse, nós começamos a privatizar, as tarifas aumentaram 127% e há um monte de contas não pagas sendo cobradas. A cada poucos dias aparece um esqueleto no armário de acertos anteriores, que são repassados para a população. É propaganda enganosa dizer que vai reduzir tarifa, porque o objetivo principal do setor privado, que é legítimo para seu interesse, é ter maior lucro. E isso, às vezes, é o lucro legítimo, normal, mas quando ele vê poder nas falhas das entidades de controle e regulação que estão distantes da população e próximos deles, a captura do regulador pelo regulado é um fenômeno conhecido na economia no mundo inteiro. As empresas de energia elétrica no Brasil, de distribuição, são 60 e poucas, os consumidores são 50 milhões. Então há uma dificuldade sim, em geral.

Nos Estados Unidos há dois modelos: as empresas privadas que prestam serviço público sob regime de custo do serviço historicamente têm tarifa menor do que aquelas que operam no regime competitivo. Teoricamente, a competição deveria reduzir os preços, mas só aumenta, porque quanto mais mercados, o preço sempre é dado pela última unidade necessária para atender a demanda. Então, se cria um custo marginal elevado e lucros para baixo, porque aquele que é eficiente opera o mercado da geração e da comercialização. E lá está muito claro. Mas o Brasil tem recursos naturais, especialmente eólicos, fotovoltaicos, capacidade tecnológica, recursos humanos, para produzir energia com capacidade, confiabilidade, mais do que o dobro necessário, mesmo dobrando o consumo per capita, para que o consumo do Brasil seja o padrão europeu de hoje, por exemplo. Basta se organizar, entrar na conversa.

Sul21 — Que outras formas de produção de energia já existem no Brasil?

Ildo Sauer — Houve uma mudança radical nos últimos anos. No começo do setor elétrico brasileiro, nas décadas de 1930, 40, 50, só se via duas coisas: energia hidráulica com reservatórios e térmicas, em geral a óleo, combustível, ou de carvão, para serem usadas nos períodos de baixa hidrologia. Hoje mudou muito, o recurso mais abundante para eletricidade no Brasil, fora a voltagem que é infinita mas tem o problema da estocagem, é a eólica. Nós temos cogeração com bagaço de cana e com gás natural, com outras formas de biomassa. Temos a eólica crescendo, a fotovoltaica e outras fontes, como a minieólica, distribuída na rede dos prédios. Há uma tendência das empresas de distribuição se tornarem uma espécie de internet, porque elas vão receber energia criada pelos consumidores e entregar para os outros. Até criamos a palavra “pronsumidores”, ele é produtor de vez em quando, joga na rede quando sobra, e é consumidor quando falta. E o Brasil é o único no mundo a fazer isso, porque nós temos grandes reservatórios, quando tem a energia sobrando se joga na rede, poupa-se água. Usa a eólica, usa a fotovoltaica. Isso exige mudar o sistema de operação, a lógica, que hoje está equivocada. O Brasil tem condição de melhorar muito o sistema e reduzir os custos. A questão é esse conflito de quem fica com os benefícios, se são aqueles que organizam o sistema, se os consumidores se organizam para melhorar, ou aqueles pobres que não tem nem energia elétrica, mas que são donos também dos potenciais hidráulicos. Mas esses são problemas políticos. (fonte: Sul21)

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