artigo: Felipe Faiwichow Estefam*

O tema latente tratado na ADI 5937 é o da subordinação da Administração ao princípio constitucional da legalidade. Nessa ação, o Partido Socialista Brasileiro questiona a constitucionalidade do Decreto Federal 9.351/18, alterado pelo Decreto Federal 9.375/18, por incluir a Eletrobras no Programa Nacional de Desestatização (PND) quando a Constituição determina que a alienação de ações de sociedades de economia mista, que importem na perda do controle acionário estatal, deva ser autorizada por lei específica. Aduz também que a legislação vigente (Lei Federal 10.848/04) excluiu a Eletrobras do PND.

Em defesa do Decreto, pode ser dito que a sua eficácia está condicionada à aprovação do Projeto de Lei 9.463/18, que visa permitir a desestatização da Eletrobras. Estabelece o seu artigo 1º: “Fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, e incluída no Programa Nacional de Desestatização – PND, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, condicionada a assinatura de contrato que tenha por finalidade a realização dos estudos necessários à execução deste Decreto à aprovação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei nº 9.463, de 2018”.

O tema é provocativo e volta a preocupar, sobretudo porque ele ressalta um abuso do Executivo em relação à obediência da lei. Para tratar sobre a ADI 5937, prefere-se responder: quais os limites de um Decreto presidencial em relação à lei? É possível a desestatização da Eletrobras por Decreto?

De pronto, diga-se que os Decretos podem ditar imposições para fazer ou deixar de fazer algo, mas desde que tais imposições decorram de lei. Para a Constituição, as ações da Administração só podem vir a agregar à lei nível de concretude; jamais podem instaurar originalmente quaisquer dever ou restrição de direito.

A esse respeito, o artigo 84, inciso IV, da Constituição delimita o sentido da competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo à fiel execução da lei. Já o artigo 84, VI, “a” atribui limitadíssimas competências ao Presidente da República para, mediante decreto, realizar transposição, desmembrando ou remanejando de unidades orgânicas.

Em suma, o ponto é que toda a norma regulamentar a ser construída pela Administração Pública deve encontrar a sua nascente, o seu engate de validade, num enunciado legislativo superior. Toda atividade administrativa é exercida com submissão à lei. É isso que diz a Constituição.

Alguns chamam isso de reserva de lei. Mas, é preciso ter em mente que a expressão “reserva de lei” é anacrônica, pois surgiu durante o processo de retirada de poderes autoritários do monarca. Na época, falava-se no campo da “reserva de lei”, em que a lei protegia algumas liberdades do cidadão e, de outro, um campo em que o poder do Monarquia ainda era livre.

Assim, é tecnicamente incorreto empregar a expressão “reserva de lei” no Brasil, ainda mais porque o artigo 48 da Constituição previu o princípio da universalidade temática do Poder Legislativo, permitindo que o Congresso Nacional disponha sobre todas as matérias de competência União. A corroborar a atecnia, não se pode dizer que vige no Brasil um modelo dualista em que se reparte a função estatal em “reserva de lei” e “livre de lei”.

De todo modo, ao que se nota da Constituição, a instituição de estatais, categoria em que a Eletrobras se encaixa, somente pode ser autorizada por lei específica (art. 37, XIX). A destituição de uma estatal, do mesmo modo, apenas pode ser autorizada pela via legal. Isso porque impera, na lição de Canotilho (“Direito constitucional e teoria da Constituição”), o princípio do congelamento do grau hierárquico, por meio do qual a norma nova que substitui, modifica ou revoga outra, deve ter uma hierarquia normativa ao menos igual à da norma que se pretende substituir, alterar ou revogar.

Com base nisso, é evidente que o Decreto em questão não tem efeito regulamentar, mas uma finalidade modificativa da lei vigente, já que esta exclui a Eletrobras do PND. Isto é, o Decreto não está em harmonia com o enunciado normativo do escalão superior; ele é contrário aos termos legais. Mesmo considerando que a eficácia do referido Decreto esteja condicionada à aprovação de um Projeto de Lei modificativo da lei vigente, a verdadeira mensagem passada é a de que já se fez o juízo adequado e necessário à desestatização da Eletrobras. Aliás, foi publicado até Aviso de Fato Relevante no DOU, informando que o Decreto 9351/2018 incluiu a Eletrobras no PND.

Sendo assim, a inclusão da Eletrobras no PND, por meio do Decreto Federal 9.351/18 é ilegal, pois viola a Lei Federal 10.848/04, e é inconstitucional, porque infringe o art. 37, XIX da CR/88 ao autorizar, sem base legal (específica), a destituição da Eletrobras, por meio de sua desestatização, lembrando que a alienação de direitos que assegurem à União a preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da sociedade é espécie de desestatização (art. 2º, §1º, ‘a’ da Lei Federal 9.491/97).

*Felipe Faiwichow Estefamé Advogado, consultor jurídico, professor de Direito Administrativo na pós-graduação da PUC-SP/COGEAE, doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP.

Artigo publicado originalmente no site Justificando

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